São Paulo, quarta, 24 de dezembro de 1997.




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DEPOIMENTO
'Celebramos num quarto'

PAULO DANIEL FARAH
especial para a Folha

No final de 1995, eu estudava na Universidade do Kuait e di vidia um quarto com um mar roquino na Moradia Estudan til. Assistia a aulas de língua, li teratura e cultura árabe, dialeto kuaitiano e islamismo.
Além disso, participava de "diuanias", reuniões tradi cionais kuaitianas em que se discutem temas religiosos, so ciais e políticos.
Há muito compreendera que a realidade do Kuait divergia consideravelmente daquela dos países árabes mediterrâ neos e, mais ainda, do Brasil.
Sabia como se comemora o Natal em países árabes como a Síria e o Líbano. É feita uma pe regrinação às casas de familia res e amigos, onde é servido vi nho (do Porto) ou licor com amêndoas cobertas de açúcar.
Nas ruelas, vêem-se bandei rinhas, enfeites diversos e algu mas manifestações populares. Em Qassa, bairro cristão de Damasco, os jovens dançam no meio da rua, usando másca ras e jogando serpentina.
À medida que o Natal se aproximava, os poucos estu dantes cristãos (europeus, em sua maioria, não havendo ne nhum outro latino-americano) questionavam o que fariam nessa data. Os efeitos da globa lização eram bastante eviden tes no Kuait, mas não no cam po religioso. Quase todos opta ram por viajar.
Na véspera de Natal, como todos que resolveram ficar, não tinha para onde ir. Na ver dade, poucos dias antes eu co nhecera um professor cristão, que me convidou à ceia em sua casa, mas quando respondi: "In sha Allah" ("Se Deus qui ser", expressão muito usada pelos muçulmanos), sua fisio nomia mudou e ele disse, com ironia, "In sha Allah", com plementando: "Talvez você prefira passar o Natal com seus amigos." E foi embora.
Havia, claramente, duas cor rentes entre os cristãos: uma que procurava aprender o má ximo sobre e com o islamismo (à qual pertencia) e outra que adotara uma postura de con frontação e encarava tudo co mo ofensa pessoal e discrimi nação religiosa.
Naquela noite, após o jantar, fomos ao quarto de dois polo neses realizar nossa tímida ce lebração. Vilmosh, estudante húngaro muito religioso, que acompanhou atentamente o caso de um kuaitiano que se converteu ao cristianismo e foi processado, começou a recla mar nervosamente.
Estava preocupado, pois poucos dias antes haviam des coberto que um estudante in glês, missionário, distribuía Bíblias e pregava o Evangelho na moradia. Aconselharam-no a "evitar confusão". Oramos o Pai Nosso, cada um em sua língua nativa, e deixamos o quarto aos poucos.
No dia 25, fiquei acordado após a Salat al fajr (primeira das cinco orações diárias mu çulmanas, feita antes do nascer do sol) e fui a uma igreja na ca pital do Kuait. Assisti a missas em francês, inglês, hindu e ta galog (idioma filipino). Lá fora, um dia quente me aguardava.



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