|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DEPOIMENTO
'Celebramos num quarto'
PAULO DANIEL FARAH
especial para a Folha
No final de 1995, eu estudava
na Universidade do Kuait e di
vidia um quarto com um mar
roquino na Moradia Estudan
til. Assistia a aulas de língua, li
teratura e cultura árabe, dialeto
kuaitiano e islamismo.
Além disso, participava de
"diuanias", reuniões tradi
cionais kuaitianas em que se
discutem temas religiosos, so
ciais e políticos.
Há muito compreendera que
a realidade do Kuait divergia
consideravelmente daquela
dos países árabes mediterrâ
neos e, mais ainda, do Brasil.
Sabia como se comemora o
Natal em países árabes como a
Síria e o Líbano. É feita uma pe
regrinação às casas de familia
res e amigos, onde é servido vi
nho (do Porto) ou licor com
amêndoas cobertas de açúcar.
Nas ruelas, vêem-se bandei
rinhas, enfeites diversos e algu
mas manifestações populares.
Em Qassa, bairro cristão de
Damasco, os jovens dançam
no meio da rua, usando másca
ras e jogando serpentina.
À medida que o Natal se
aproximava, os poucos estu
dantes cristãos (europeus, em
sua maioria, não havendo ne
nhum outro latino-americano)
questionavam o que fariam
nessa data. Os efeitos da globa
lização eram bastante eviden
tes no Kuait, mas não no cam
po religioso. Quase todos opta
ram por viajar.
Na véspera de Natal, como
todos que resolveram ficar,
não tinha para onde ir. Na ver
dade, poucos dias antes eu co
nhecera um professor cristão,
que me convidou à ceia em sua
casa, mas quando respondi:
"In sha Allah" ("Se Deus qui
ser", expressão muito usada
pelos muçulmanos), sua fisio
nomia mudou e ele disse, com
ironia, "In sha Allah", com
plementando: "Talvez você
prefira passar o Natal com seus
amigos." E foi embora.
Havia, claramente, duas cor
rentes entre os cristãos: uma
que procurava aprender o má
ximo sobre e com o islamismo
(à qual pertencia) e outra que
adotara uma postura de con
frontação e encarava tudo co
mo ofensa pessoal e discrimi
nação religiosa.
Naquela noite, após o jantar,
fomos ao quarto de dois polo
neses realizar nossa tímida ce
lebração. Vilmosh, estudante
húngaro muito religioso, que
acompanhou atentamente o
caso de um kuaitiano que se
converteu ao cristianismo e foi
processado, começou a recla
mar nervosamente.
Estava preocupado, pois
poucos dias antes haviam des
coberto que um estudante in
glês, missionário, distribuía
Bíblias e pregava o Evangelho
na moradia. Aconselharam-no
a "evitar confusão". Oramos
o Pai Nosso, cada um em sua
língua nativa, e deixamos o
quarto aos poucos.
No dia 25, fiquei acordado
após a Salat al fajr (primeira
das cinco orações diárias mu
çulmanas, feita antes do nascer
do sol) e fui a uma igreja na ca
pital do Kuait. Assisti a missas
em francês, inglês, hindu e ta
galog (idioma filipino). Lá fora,
um dia quente me aguardava.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|