São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 1998.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO O vigário de Cristo entre Castro e Clinton




A visita do papa é um furacão na ilha,
que vai polarizar as tensões entre a igreja e o Estado FREI BETTO
especial para a Folha, de Havana

Tudo indica que a visita de João Paulo 2º, um furacão sobre Cuba, afetará a vida interna dessa nação, polarizando as tensões entre a Igreja Católica e o Estado.
Nesses quatro dias, travou-se aqui uma batalha ideológica. O papa, em nome de Cristo, procurou manter-se equidistante do confronto entre o socialismo de Castro e o neoliberalismo de Clinton. Fidel, interessado em assegurar boas relações com o Vaticano, esforçou-se para estabelecer entre o povo e o visitante uma empatia que não deve ser interpretada como sinal de concessões à Igreja Católica local, considerada hostil ao regime.
Esta manhã, na Praça na Revolução, o papa celebra a missa de despedida. Fidel estará presente. Verá uma liturgia cujo conteúdo é, no mínimo, provocativo. O cântico "Ave Maria" diz em seus versos: "Esta noite em que todos choramos... tristes pedimos: salva Cuba..." Outro cântico expressa que a igreja quer ser "uma luz na escuridão".
Fidel ouvirá também mais uma homilia papal que não deve diferir das anteriores: crítica ao socialismo e reservada diante das conquistas sociais da Revolução. Mas, ao fim da tarde, ao se despedir de João Paulo 2º no aeroporto, dará todo o seu apoio à proposta vaticana de promover "a globalização da solidariedade" e enfatizará temas sociais de pronunciamentos pontifícios.
Wojtyla não abandonou aqui sua cruzada anticomunista. Apenas evitou fazer eco aos clamores anticastristas de Miami e incorporou a seu discurso críticas aos desarranjos do capitalismo. Na defesa da justiça social, o papa condena os "abusos" da economia de mercado, sem questioná-la em sua essência.
Ciente de que a maioria dos católicos cubanos (5% da população, segundo o governo; 70% segundo o Vaticano) não apóia a Revolução, Fidel não se dispõe a empunhar a pá que ajudaria a cavar, dentro do país, a trincheira na qual a igreja se instalaria para contestar o regime.
O saldo positivo da visita é que Fidel ganhou um importante aliado em sua luta contra o bloqueio norte-americano. O papa defendeu o direito de o povo cubano ser "protagonista de sua história pessoal e social". E enfatizou que "é preciso que Cuba se abra ao mundo e que o mundo se abra a Cuba". A frase é ambígua. Para uns, trata-se de um brado contra o isolamento da ilha, marginalizada inclusive da OEA. Há quem a interprete como um eco de Clinton, que promete acabar com o bloqueio desde que Cuba, primeiro, convoque eleições pluripartidárias e aceite o retorno dos exilados.
Wojtyla veio reforçar a Igreja Católica local, cujas relações com a Revolução não ultrapassam os limites da formalidade num clima de tensão. Ao recepcioná-lo no aeroporto, Fidel deixou claro, em sua apologia do socialismo cubano, seu interesse em manter boas relações com o Vaticano sem que isso signifique ceder às pressões dos bispos cubanos.
Fez críticas à Igreja Católica local -incluindo seu testemunho de ex-aluno de colégios elitistas, que discriminavam negros e protestantes- e elogiou João Paulo 2º por ter feito autocrítica frente às Cruzadas, à Inquisição e ao caso Galileu, mas em nenhum momento admitiu erros do regime no relacionamento com cristãos. Ao contrário, enfatizou que, se houve problemas, "jamais foi por culpa da Revolução".
Esta visita deveria aparecer aos olhos do mundo como um êxito dos católicos de Cuba. Fidel "expropriou" da igreja o monopólio de ser a única anfitriã ao ir à TV e convocar toda a população para saudar o papa nas ruas e comparecer em massa aos atos litúrgicos. Transformou a visita aos católicos numa visita ao povo e projetou o país no cenário internacional.
Em nenhuma nação "católica" João Paulo 2º teve uma acolhida tão oficial e maciça. O país parou para vê-lo passar. Os cubanos, contudo, estão acostumados a enfrentar furacões. Ainda é cedo para falar em danos significativos na Revolução, embora se espere maior fluxo de pessoas rumo às iniciativas e aos espaços da igreja. O cardeal Jaime Ortega tende a se tornar porta-voz da dissidência interna.
Perante a história das conflitivas relações entre Igreja Católica e Estado em Cuba, nenhum dos dois parece disposto a fazer autocrítica e, muito menos, modificar sua postura.
A se confirmar essa hipótese, perdem os dois. A igreja, por condicionar seu empenho pastoral às concessões do regime e se acomodar no papel de vítima. A Revolução, por não incorporar setores católicos a seus propósitos e se ver obrigada a conviver, internamente, com uma instituição religiosa cujas críticas ao regime têm ressonância mundial.
Perde sobretudo Cuba, cuja população, mais unida, tornar-se-ia menos vulnerável aos ventos neoliberais que derrubaram o Muro de Berlim.


Frei Betto, 53, é frade dominicano e escritor, autor de "Fidel e a Religião", entre outros


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.