São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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ARTIGO

EUA erram sobre América Latina

TOMÁS ELOY MARTÍNEZ

Assim como a América Latina comete equívocos constantes sobre os Estados Unidos, confundindo os disparates de George W. Bush com o espírito da nação norte-americana, também os Estados Unidos imaginam que seus vizinhos vivam destinos raras vezes semelhantes à realidade.
Por preguiça ou indiferença, supõem que os governos da região sejam todos assemelhados, do bonapartismo do venezuelano Hugo Chávez ao socialismo à européia do chileno Ricardo Lagos. Trata-se de democracias populistas, ouve-se dizer, em tom entre alarmado e desdenhoso.
Mais de um jornal, mesmo entre os mais sérios, publicou nos últimos meses alusões diretas ou disfarçadas ao populismo que ameaça as vastas terras ao sul.
"Se a Frente Ampla vencer as eleições presidenciais uruguaias", me disse no começo de dezembro um analista norte-americano que tem acesso a informações privilegiadas, "as massas uma vez mais determinarão o rumo político em toda a América do Sul, como acontecia 60 anos atrás".
De acordo com essa versão, o horizonte se tingiria de nacionalismo, messianismo e, acima de tudo, de antiamericanismo.
Na década de 40, os Estados Unidos identificavam Getúlio Vargas e Juan Perón com a ascensão do populismo na América Latina. Sessenta anos mais tarde, as figuras que mais parecem encarná-lo são as de Hugo Chávez e a do líder cocaleiro boliviano Evo Morales, ainda que o rótulo também seja aplicado indistintamente -e com flagrante injustiça -ao brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, ao argentino Néstor Kirchner, a Lagos, ao mexicano Vicente Fox, ao peruano Alejandro Toledo e ao candidato presidencial da esquerda uruguaia, Tabaré Vázquez.
Mais deliberado que o de Chávez, o populismo de Perón assomava em todos os seus discursos públicos. O último -e um dos mais curtos, com pouco menos de 600 palavras-, pronunciado na praça de Maio 20 dias antes de sua morte, em 12 de junho de 1974, invocava 13 vezes a palavra "povo", em contexto tão sentimental que a única coisa que se pode pensar é o quanto o orador desejava identificar o desejo de quem o escutava ao seu próprio.
"Temos o povo do nosso lado", disse Perón duas vezes. "Jamais defenderei outra causa que não a causa do povo." Imaginar que seja esse o vocabulário de Lula, Kirchner ou Lagos é manter atrasado em meio século o relógio da América Latina.
Pode-se falar de gestos populistas, da parte dos dois primeiros, como a visita que Kirchner fez a uma pizzaria em uma região de Buenos Aires onde assaltos a mão armada vêm aterrorizando a população, ou o retorno de Lula ao bairro pobre onde morou após migrar para São Paulo.
Mas são gestos apenas; nenhum dos dois adotou políticas populistas. Kirchner atua nos limites do que se poderia classificar de liberalismo democrático, e Lula foi acusado por seu vice-presidente, o conservador José Alencar, de estar transferindo riquezas do setor produtivo ao setor financeiro.
Alguns veículos de imprensa norte-americanos criticaram a tenacidade com que líderes como Lula, Fox e Kirchner confiaram posições executivas a homens de sua extrema confiança, quer tivessem experiência administrativa, quer não. A revista brasileira "Veja", igualmente, sublinhou que os ministros e assessores de Lula demoram a aprender suas funções, o que torna ainda mais pesada a indolente burocracia do país.
Aos novos dirigentes não restou, ainda assim, outro recurso que não governar com pessoas a quem conhecem bem. Tanto no Brasil quanto no México e na Argentina abundam funcionários a quem a experiência ensinou, com perfeição, os caminhos da corrupção. Tão logo um foco de podridão é contido, surge outro, e só se pode combater esses problemas com amigos de cuja honestidade não haja dúvidas.
Chávez começou fazendo o mesmo na Venezuela. Não dispunha de muitos quadros quando venceu sua primeira eleição, no final de 1998, e distribuiu os postos de confiança a partidários que pareciam fanáticos de sua causa.
Três anos mais tarde, pelo menos metade deles passou para o campo adversário, o que forçou o presidente venezuelano a se rodear apenas dos mais fiéis.
Algo parecido poderia acontecer com Evo Morales, caso governe a Bolívia. O líder cocaleiro, de cuja força de caráter ninguém duvida, parece completamente desorientado ao falar das relações entre seu país e o mundo.
Em quase toda a região, a aprendizagem da arte de governar é uma questão de tentativa e erro incessante. E os Estados Unidos não são exceção a essa regra.
Algo diferente do populismo está surgindo com ímpeto cada vez maior na América Latina. Começam a nascer aqui e ali movimentos de esquerda ou centro-esquerda cuja base de apoio são as classes médias e que se mostram inclinados a novas formas de liberalismo econômico.
Trata-se de um fenômeno que nada tem a ver com o peronismo dos anos 50 ou com o Estado Novo brasileiro, uma década antes. Os principais apoios vinham então dos setores operários e camponeses, além dos militares, que agiam como árbitros do poder.
Agora temos governos previsíveis, para fora, e surpreendentes por dentro, que têm os olhos mais em seus interesses do que na opinião alheia.
Os especialistas norte-americanos podem classificar essa tendência como populismo, demagogia, esquerdismo. Mas trata-se, na realidade, de um primeiro passo para a maturidade ou, se preferirem, para a modernidade.


Tomás Eloy Martínez, escritor argentino, é autor de "O Romance de Perón", "Santa Evita" e "O Vôo da Rainha". Suas obras foram traduzidas para mais de 30 idiomas. Dirige o programa de estudos latino-americanos na Universidade Rutgers (Nova Jersey).


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