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ARTIGO
EUA erram sobre América Latina
TOMÁS ELOY MARTÍNEZ
Assim como a América Latina
comete equívocos constantes sobre os Estados Unidos, confundindo os disparates de George W.
Bush com o espírito da nação norte-americana, também os Estados
Unidos imaginam que seus vizinhos vivam destinos raras vezes
semelhantes à realidade.
Por preguiça ou indiferença, supõem que os governos da região
sejam todos assemelhados, do bonapartismo do venezuelano Hugo Chávez ao socialismo à européia do chileno Ricardo Lagos.
Trata-se de democracias populistas, ouve-se dizer, em tom entre
alarmado e desdenhoso.
Mais de um jornal, mesmo entre os mais sérios, publicou nos
últimos meses alusões diretas ou
disfarçadas ao populismo que
ameaça as vastas terras ao sul.
"Se a Frente Ampla vencer as
eleições presidenciais uruguaias",
me disse no começo de dezembro
um analista norte-americano que
tem acesso a informações privilegiadas, "as massas uma vez mais
determinarão o rumo político em
toda a América do Sul, como
acontecia 60 anos atrás".
De acordo com essa versão, o
horizonte se tingiria de nacionalismo, messianismo e, acima de
tudo, de antiamericanismo.
Na década de 40, os Estados
Unidos identificavam Getúlio
Vargas e Juan Perón com a ascensão do populismo na América Latina. Sessenta anos mais tarde, as
figuras que mais parecem encarná-lo são as de Hugo Chávez e a
do líder cocaleiro boliviano Evo
Morales, ainda que o rótulo também seja aplicado indistintamente -e com flagrante injustiça
-ao brasileiro Luiz Inácio Lula
da Silva, ao argentino Néstor
Kirchner, a Lagos, ao mexicano
Vicente Fox, ao peruano Alejandro Toledo e ao candidato presidencial da esquerda uruguaia, Tabaré Vázquez.
Mais deliberado que o de Chávez, o populismo de Perón assomava em todos os seus discursos
públicos. O último -e um dos
mais curtos, com pouco menos de
600 palavras-, pronunciado na
praça de Maio 20 dias antes de sua
morte, em 12 de junho de 1974, invocava 13 vezes a palavra "povo",
em contexto tão sentimental que
a única coisa que se pode pensar é
o quanto o orador desejava identificar o desejo de quem o escutava ao seu próprio.
"Temos o povo do nosso lado",
disse Perón duas vezes. "Jamais
defenderei outra causa que não a
causa do povo." Imaginar que seja esse o vocabulário de Lula,
Kirchner ou Lagos é manter atrasado em meio século o relógio da
América Latina.
Pode-se falar de gestos populistas, da parte dos dois primeiros,
como a visita que Kirchner fez a
uma pizzaria em uma região de
Buenos Aires onde assaltos a mão
armada vêm aterrorizando a população, ou o retorno de Lula ao
bairro pobre onde morou após
migrar para São Paulo.
Mas são gestos apenas; nenhum
dos dois adotou políticas populistas. Kirchner atua nos limites do
que se poderia classificar de liberalismo democrático, e Lula foi
acusado por seu vice-presidente,
o conservador José Alencar, de estar transferindo riquezas do setor
produtivo ao setor financeiro.
Alguns veículos de imprensa
norte-americanos criticaram a tenacidade com que líderes como
Lula, Fox e Kirchner confiaram
posições executivas a homens de
sua extrema confiança, quer tivessem experiência administrativa,
quer não. A revista brasileira "Veja", igualmente, sublinhou que os
ministros e assessores de Lula demoram a aprender suas funções,
o que torna ainda mais pesada a
indolente burocracia do país.
Aos novos dirigentes não restou, ainda assim, outro recurso
que não governar com pessoas a
quem conhecem bem. Tanto no
Brasil quanto no México e na Argentina abundam funcionários a
quem a experiência ensinou, com
perfeição, os caminhos da corrupção. Tão logo um foco de podridão é contido, surge outro, e só
se pode combater esses problemas com amigos de cuja honestidade não haja dúvidas.
Chávez começou fazendo o
mesmo na Venezuela. Não dispunha de muitos quadros quando
venceu sua primeira eleição, no final de 1998, e distribuiu os postos
de confiança a partidários que pareciam fanáticos de sua causa.
Três anos mais tarde, pelo menos metade deles passou para o
campo adversário, o que forçou o
presidente venezuelano a se rodear apenas dos mais fiéis.
Algo parecido poderia acontecer com Evo Morales, caso governe a Bolívia. O líder cocaleiro, de
cuja força de caráter ninguém duvida, parece completamente desorientado ao falar das relações
entre seu país e o mundo.
Em quase toda a região, a aprendizagem da arte de governar é
uma questão de tentativa e erro
incessante. E os Estados Unidos
não são exceção a essa regra.
Algo diferente do populismo está surgindo com ímpeto cada vez
maior na América Latina. Começam a nascer aqui e ali movimentos de esquerda ou centro-esquerda cuja base de apoio são as classes médias e que se mostram inclinados a novas formas de liberalismo econômico.
Trata-se de um fenômeno que
nada tem a ver com o peronismo
dos anos 50 ou com o Estado Novo brasileiro, uma década antes.
Os principais apoios vinham então dos setores operários e camponeses, além dos militares, que
agiam como árbitros do poder.
Agora temos governos previsíveis, para fora, e surpreendentes
por dentro, que têm os olhos mais
em seus interesses do que na opinião alheia.
Os especialistas norte-americanos podem classificar essa tendência como populismo, demagogia, esquerdismo. Mas trata-se,
na realidade, de um primeiro passo para a maturidade ou, se preferirem, para a modernidade.
Tomás Eloy Martínez, escritor argentino, é autor de "O Romance de Perón",
"Santa Evita" e "O Vôo da Rainha". Suas
obras foram traduzidas para mais de 30
idiomas. Dirige o programa de estudos
latino-americanos na Universidade Rutgers (Nova Jersey).
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