São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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ÁSIA CENTRAL

"Senhores da guerra" ameaçam reconstrução

Ex-enviado da ONU vê avanços no Afeganistão apesar da insegurança

CÍNTIA CARDOSO
DE NOVA YORK

Após dois anos como enviado especial das Nações Unidas ao Afeganistão, o diplomata argelino Lakhdar Brahimi, 70, comenta com orgulho os avanços ocorridos no país desde a deposição do regime islâmico extremista do Taleban pelas forças da coalizão liderada pelos EUA.
Brahimi, que deixou o cargo no começo deste ano, enfatiza que 2 milhões de refugiados voltaram, que 4 milhões de crianças estão na escola e que a pólio está praticamente erradicada.
O entusiasmo, no entanto, é temperado pela preocupação com a questão da segurança do país, sobretudo com relação às milícias comandadas pelos "senhores da guerra". "Há situações nas quais ninguém atinge você diretamente, mas podem chegar e falar: "Se você não votar em mim amanhã...'", diz Brahimi, que faz um gesto simulando uma faca cortando a garganta.
Brahimi foi nomeado para o posto no Afeganistão em outubro de 2001. À frente da missão da ONU, ele foi o principal responsável por costurar os acordos de Bonn, que levaram à formação da Loya Jirga (ou "grande conselho", que reuniu 500 delegados de 32 Províncias) e ao estabelecimento da nova Constituição.
Ao regressar a Nova York, Brahimi ganhou a função de conselheiro do secretário-geral da ONU, Kofi Annan.
O novo posto, segundo ele, não envolverá atuação direta no processo de reconstrução do Iraque. A administração Bush, entretanto, faz forte pressão para que o ex-enviado chefie uma missão da ONU no Iraque.
Leia a seguir a entrevista concedida por Brahimi à Folha em seu escritório na sede das Nações Unidas, em Nova York.

 

Folha - Qual é a sua avaliação do papel da ONU no cenário pós-guerra do Afeganistão?
Ladhkar Brahimi -
Boa. A ONU está envolvida há muitos anos no Afeganistão. Isso já ocorre desde os anos 90, quando havia muito pouco interesse pelo país. No aspecto político, as Nações Unidas participaram e organizaram o processo de Bonn. A última e decisiva etapa dessa nossa ajuda foi a Constituição.

Folha - Recentemente o sr. pediu a ampliação urgente da participação das forças militares internacionais também em regiões fora da capital, Cabul. Qual é a extensão do problema da segurança no Afeganistão?
Brahimi -
A segurança ainda é um problema muito sério. É uma grave ameaça à implementação do processo de reconstrução do país e ao processo político. A própria atividade da ONU está restrita em algumas áreas por causa da questão de segurança. O Conselho de Segurança adotou uma resolução que permite a expansão de forças ao redor de Cabul, mas isso ainda não se concretizou. Por isso, fiz esse apelo. Há as "equipes de reconstrução das Províncias" [grupos militares liderados pelos EUA, mas que não são submetidos a um mandato da ONU] e elas parecem estar crescendo. É um modo de expandir a presença militar fora de Cabul. É melhor do que nada, mas não acredito que seja a melhor solução.

Folha - Devido à insegurança no país, o senhor acredita ser possível a realização de eleições gerais ainda neste ano?
Brahimi -
Estamos trabalhando nisso agora para ver como organizar os preparativos dessas eleições e analisar quando elas serão possíveis. Acredito que pensar em eleições presidenciais em agosto ou setembro deste ano seja realístico. Mas, pessoalmente, eu duvido que seja possível ter eleições presidenciais e parlamentares ao mesmo tempo neste ano.

Folha - Qual a ameaça representada pelos "senhores da guerra"?
Brahimi -
A divisão de facções é certamente um problema para a sociedade. É preciso termos certeza de que esses chamados "senhores da guerra" não vão utilizar a força para influenciar o voto. A questão de segurança não é apenas a presença de uma bomba. Há situações nas quais ninguém atinge você diretamente, mas podem chegar e falar: "Se você não votar em mim amanhã...".

Folha -Como o sr. acredita que o Afeganistão deva equilibrar uma democracia à moda ocidental com o legado da tradição islâmica e tribal?
Brahimi -
Os afegãos estão tentando encontrar o equilíbrio adequado entre tradição, religião e modernidade. Não existe ainda um consenso entre os afegãos sobre como isso deve ocorrer, mas a nova Constituição é um sinal de esperança de que eles terão a capacidade de encontrar esse equilíbrio. Nós, estrangeiros, temos de ter paciência e respeito. Temos de deixar que eles trilhem o seu próprio caminho, com a velocidade que eles julgarem ser a mais adequada.



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