São Paulo, quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

Próximo Texto | Índice

ORIENTE MÉDIO

Em meio a grande tensão, os palestinos participam de votação em que o grupo terrorista é o maior protagonista

Hamas é incógnita nas eleições de hoje

Muhammed Muheisen/Associated Press
Em campo de refugiados perto de Ramallah (Cisjordânia), palestino passa por cartazes de campanha para a eleição parlamentar


MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A GAZA

O governo palestino reprimiu, Israel mandou proibir, os EUA advertiram e a União Européia ameaçou boicotar. Quanto mais pressão sofria, mais o Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas, crescia nas pesquisas de opinião. Carregado por essa onda de popularidade, que o colocou praticamente em empate técnico com o poderoso Fatah, do líder morto Iasser Arafat, o Hamas chega hoje à segunda e crucial eleição legislativa palestina como uma incógnita, cuja resolução irá reverberar muito além das disputadas fronteiras locais: abandonará o terrorismo para aderir ao jogo político ou se valerá das armas do sistema democrático apenas para implodi-lo?
Há indicações para ambas as direções. Por um lado, o Hamas se engajou numa campanha extremamente organizada, com uma plataforma que não defende a destruição de Israel (como prega sua Constituição), evitou abordar temas sensíveis do código de comportamento islâmico, como a proibição ao consumo de álcool e à emancipação feminina, e centrou fogo na promoção de um governo "limpo", ponto fraco do corrupto Fatah. Chegou a criar um nome mais palatável para a campanha, "Mudança e Reforma". Segundo as últimas pesquisas, deverá conquistar cerca de 35% das 132 cadeiras do Conselho Legislativo Palestino, ficando pouco atrás do Fatah, o que o transformará na principal força de oposição.
Tudo indica que a eleição de hoje anunciará uma mudança no cenário político do conflito entre israelenses e palestinos. Os grandes líderes saíram de cena. Arafat morreu num hospital de Paris em novembro de 2004, deixando um vácuo que o esforçado mas opaco Mahmoud Abbas, eleito no ano passado, não conseguiu preencher. O premiê israelense, Ariel Sharon, segue internado numa UTI em Jerusalém em estado de coma, aumentando o suspense. Tudo pronto para uma mudança de guarda? Hoje, os cerca de 1,3 milhão de palestinos que irão às urnas decidirão.
"A velha guarda do Fatah está aferrada ao poder e não o cederá facilmente", diz o ativista Wael Alqarra, do Centro de Direitos Humanos Aldameer, em Gaza. "A eleição está tão disputada que o conflito com Israel passou a segundo plano: importa é quem dominará a política palestina."
De fato, para surpresa de muitos, o conturbado processo de paz com Israel, que deu origem à Autoridade Nacional Palestina, em 1994, e acabou se tornando em pouco mais que uma frágil coexistência entre os dois povos depois de passar pela segunda intifada (revolta), foi quase secundário nesta campanha. Com nome mais apaziguador, o Hamas concentrou esforços em denunciar a corrupção crônica e o cacoete centralizador do governo herdado por Abbas. Com a morte de Arafat, viu-se condenado a administrar uma ditadura sem ditador.
Nas ruas de Gaza e da Cisjordânia, predominam as cores amarela (Fatah) e verde (Hamas), nas milhares de bandeiras que tremulam ao lado de cartazes de propaganda dos candidatos. O mais popular deles, Marwan Barghouti, encabeça a chapa do Fatah, apesar de estar numa prisão israelense, condenado a cinco penas de prisão perpétua por terrorismo. Muito diferente da primeira eleição, em 1996, quando o Fatah concorreu quase sozinho e abocanhou 80% do Parlamento.
A imagem de Barghouti, deixando a corte israelense com os punhos algemados erguidos de forma desafiadora, é tão comum nos territórios palestinos quanto a de Arafat, cujos pecados parecem ter sido perdoados no dia 11 de novembro de 2004, quando morreu em Paris, para onde foi transferido após longo cerco israelense em seu QG de Ramallah. "Vote 11 em gratidão ao shahid [mártir]", pede um grande outdoor perto da praça principal de Gaza, abaixo de uma foto de Arafat, sorridente, abraçando Abbas.

Fatah enfraquecido
Corroído pelas divisões internas e pela impopularidade gerada por sua imagem corrupta, o Fatah ainda carrega a bandeira do nacionalismo palestino, erguida há quatro décadas ao ser fundado por Arafat, mas seu enfraquecimento é visível. "Quero mudança, não importa para que lado", diz o engenheiro Mustafa Najar, justificando seu voto hoje no Hamas.
Assim como ele, muitos dos votos que o grupo responsável por centenas de mortes de israelenses em ataques terroristas receberá hoje têm origem no protesto contra o Fatah e sua inchada e paternalista máquina estatal, e não num suposto apoio à radicalização contra o Estado judeu.
O espectro da violência que assusta os palestinos na eleição de hoje, também para surpresa geral, não vem do terrorista Hamas, mas de facções do Fatah inconformadas em perder terreno para os fundamentalistas. Ontem, um de seus líderes foi morto a tiros na Cisjordânia por correligionários, aumentando ainda mais a tensão.
"Apesar de tudo, espero que a eleição traga estabilidade para a região", diz o sociólogo israelense Baruch Kimmerling, autor de um livro clássico sobre a formação do povo palestino.


Próximo Texto: Grupo é um misto de bombas com filantropia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.