São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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IRAQUE OCUPADO

"Novelização" do noticiário da TV pode transformar frustração com a invasão em derrota do presidente

Famílias de soldados são ameaça para Bush

FRANK RICH
DO ""NEW YORK TIMES"

Em 27 de fevereiro de 1968, o âncora visto na época como o mais confiável dos EUA, Walter Cronkite, da CBS, encerrou uma matéria especial sobre o Vietnã dizendo que ""a única saída racional" seria buscar negociar o fim da guerra. Para o presidente Lyndon Johnson, esse pronunciamento de Cronkite representou sua sentença de morte política. ""Se perdi [o apoio de] Cronkite, perdi o sr. Cidadão Comum", ele confidenciou a seu secretário de imprensa. Um mês mais tarde, Johnson decidiu não tentar se reeleger.
Se o Iraque fosse o Vietnã, o aparecimento de Bob Woodward no programa "60 Minutes" da noite do domingo passado poderia ter sido o momento em que George W. Bush perdeu o apoio de ""Joe Public" (o termo que o atual presidente texano prefere para designar o cidadão comum). Woodward, o mais famoso dos jornalistas americanos, até agora não era visto como tendo sido intransigente com o presidente. Se o fosse, Bush jamais teria lhe concedido horas de entrevistas ""on the record". No domingo passado, entretanto, Bush parece ter perdido seu apoio.
Entretanto, apesar de todas as semelhanças, o Iraque não é o Vietnã -não como guerra, e menos ainda como evento de televisão. A Guerra do Iraque possui sua dinâmica de mídia própria, que ainda poderá expulsar Bush do poder, mas não seguindo o mesmo roteiro com o qual o Vietnã derrubou Lyndon Johnson.
Não existem mais figuras quase paternas como Cronkite, não há mais um âncora, jornalista ou órgão de imprensa que exerça um poder tão grande sobre o público de massas. Existe, em lugar disso, uma nova cultura de imprensa que fez do atual presidente seu alvo -uma cultura que não existia na época do Vietnã e que pode ser mais letal do que havia naquele período.
Parte dessa nova cultura se deve à tecnologia, é claro. Comparado ao sangue derramado no Vietnã, as imagens do sangue vertido no Iraque parecem movidas a esteróides eletrônicos. Mas num país que faz fila para assistir a ""Kill Bill", o explícito ""momento Mogadício" em Fallujah pode ter impacto de curta duração.

Noticiário como novela
A mudança na cultura jornalística que representa a ameaça mais séria ao presidente não é sensorial, mas emocional: a ascensão do noticiário como uma telenovela que fica no ar 24 horas por dia, sete dias por semana, e cujas estrelas são pessoas comuns. Hoje o presidente Bush enfrenta a "telenovela" ""As Famílias".
Bush sabe como defender-se de jornalistas: ele os mantêm à distância e os retrata como membros de uma elite que não tem contato com ""Joe Public".
Procura limitar a transmissão de imagens aflitivas, ou criando outras que se sobreponham a elas, como imagens triunfalistas (dele no porta-aviões, por exemplo), ou proibindo sua veiculação (no caso das fotos de caixões de soldados). Para justificar esse veto à mídia, Bush disse ter ficado "emocionado" com as imagens. Mais tarde, um porta-voz acrescentou: "Temos de prestar atenção à privacidade e à sensibilidade das famílias dos mortos; essa deve ser nossa maior preocupação".
Entretanto, confrontado com uma revolta das Famílias, ele cede. As Famílias são o próprio ""Joe Public", e percebe-se o medo que Bush sente delas pelo momento escolhido para a coletiva de imprensa repentina dada no horário nobre do dia 13 deste mês. Nos dias anteriores a televisão tinha sido dominada pelas famílias, e o fenômeno estava à toda no dia 12.
Todos os três programas de notícias matinais das grandes redes abertas, justamente os que são vistos por um público enorme de mulheres americanas em idade de votar, trouxeram matérias sobre as famílias ou entrevistas com elas ou seus vizinhos: ou as famílias de vítimas do 11 de Setembro, ou as famílias de soldados americanos (dos soldados mortos no Iraque ou daqueles que foram obrigados a estender sua permanência no país), ou, ainda, dos americanos feitos reféns no Iraque.
Essas famílias, com suas tristes histórias sobre pais ou filhos mortos ou ausentes, comovem o público profundamente. A Casa Branca, depois de cometer o erro estratégico de manter o presidente longe das famílias enlutadas no início da guerra, agora quer desesperadamente aproximar-se delas. Na entrevista relutante que concedeu à imprensa, Bush não parecia estar em comando de muita coisa, tendo sido obrigado a improvisar, mas ele soube bater em suas teclas já ensaiadas sobre as famílias -e mais de meia dúzia de vezes.
""Sinto-me incrivelmente triste quando encontro familiares das vítimas", ele disse em dado momento, acrescentando: ""E o faço com freqüência" (mensagem: eu me importo -e mais do que meu pai parecia se importar). ""Já estive com muitos familiares", ele reiterou mais tarde, ""e faço o melhor que posso para consolá-los pela perda de seus entes queridos" (mensagem: eu me preocupo tanto quanto Bill Clinton se preocupou após Oklahoma City).
No entanto a entrevista coletiva à imprensa não interrompeu o fluxo constante de famílias na televisão, e a cada dia que passa o Iraque vai criando novos membros desse elenco.
Os assessores presidenciais Karl Rove e Karen Hughes não se atrevem a enfrentar as famílias que enviaram entes queridos ao Iraque e agora estão cada vez mais impacientes com a guerra ou já se voltaram contra ela. Seja como for, a telenovela familiar trágica já virou uma parte tão integrante da cultura da mídia que as grandes redes de TV não têm como abrir mão dela, não importa o que a Casa Branca tenha a dizer a respeito.
Começando em 1996, quando a Fox News e a MSNBC puseram fim ao monopólio da CNN sobre o noticiário a cabo 24 horas por dia, o sofrimento de pessoas que perderam filhos ou pais, ou em razão de calamidades apocalípticas ou de crimes comuns, já virou indício certeiro de sucesso de audiência nos noticiários de TV, tanto da televisão a cabo quanto da aberta.
Não é a mesma cultura que aquela que promoveu a inversão de opiniões no front doméstico no caso do Vietnã. Nessa guerra, as tropas americanas eram vilificadas (coisa que não acontece na guerra atual, mesmo por seus críticos mais intransigentes), e suas famílias não eram sempre, como hoje, as famílias suburbanas, de classe média, que integram o público do noticiário noturno ou do ""Good Morning America".
Os principais manifestantes a se opor à guerra tampouco eram pessoas cujas imagens agradavam aos telespectadores: com freqüência eram estudantes de cabelos compridos e linguagem desagradável. Durante anos, foi fácil para a televisão (e o público) desprezar ou marginalizar aqueles que protestavam contra a guerra.
O verdadeiro protótipo do tratamento atual que a TV está dando ao Iraque é a crise dos reféns americanos no Irã, em 1979-80. Em ""Roone", seu livro de memórias publicado postumamente, Roone Arledge, da ABC News, relata a excitação (e o retorno em audiência) da transformação da captura dos 52 americanos em Teerã numa telenovela diária.
Ele percebeu que era essa a maneira de transformar as questões complexas do islamismo radical e do Oriente Médio num programa de suspense que ninguém podia deixar de ver, estrelado por americanos comuns. Quando a atração começou a atingir até 30% da audiência, a ABC se deu conta de que finalmente encontrara uma maneira de competir com o invencível Johnny Carson.
Em seu livro, Arledge recorda que a Casa Branca de Jimmy Carter começou por receber bem essa narrativa diária, imaginando que a dramatização feita pela ABC da história dos reféns mostrasse o executivo-chefe em luz mais presidencial do que seu rival nas primárias, Teddy Kennedy. Em lugar disso, porém, o foco implacável da ABC sobre a frustração das famílias dos reféns acabou contribuindo para a impressão crescente de que Carter era ineficiente. Quando chegou o dia da eleição, um ano após a tomada dos reféns, o programa de Arledge ajudara a preparar a derrota de Carter.
Mas aquela cobertura era um empreendimento minúsculo comparado ao destaque atual dado às famílias das vítimas da guerra por muitas redes de TV em muitos programas. Agora o que se vê são as famílias o tempo todo, e os danos parecem estar se manifestando em menos tempo.
No domingo passado, quando o ""60 Minutes" se preparava para colocar no ar sua entrevista com Woodward, o historiador Niall Ferguson escreveu no ""New York Times" que é assustador ver as sondagens que indicam que o número de americanos que acham que a situação no Iraque vai bem caiu de 85% para 35% em apenas um ano, sendo que metade do país já deseja algum grau de retirada das tropas.
Ferguson observou que a aprovação americana da Guerra do Vietnã caiu para menos de 40% apenas em 1968, quando os mortos americanos já eram mais de 20 mil, muito mais do que os 700 mortos no Iraque até agora.
Existem várias razões políticas que explicam essa aceleração do desencanto nacional nos meses do pós-guerra, a maioria delas visíveis em campo no Iraque. Mas não se deve subestimar o componente cultural.
Ficou célebre a frase do crítico de televisão Michael Arlen, que batizou a Guerra do Vietnã de ""A Guerra da Sala de Estar". Em nossa nova guerra da sala de estar, porém, a batalha da mídia chegou até as salas de estar reais em que as Famílias concedem suas entrevistas às redes de TV. Essas Famílias são as guerrilheiras subestimadas na batalha pela opinião pública. O governo talvez tenha mais dificuldade em pacificá-las do que em subjugar os insurgentes em Fallujah.


Tradução de Clara Allain


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