|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Igreja não protegeu ruandeses de massacre
EM NYAMATA (RUANDA)
Aos 72 anos, Domithilla Mukarubuga retira lentamente um
turbante que lhe cobre a cabeça
para exibir um troféu: uma cicatriz de cerca de cinco centímetros, numa parte afundada
do crânio, resultado de uma
machadada que levou de um
membro da milícia hutu interahamwe em abril de 1994.
"Tentaram me matar, mas eu
sobrevivi", conta, com ar desafiador. Cinco de seus filhos não
tiveram a mesma sorte.
É manhã de sol forte em Nyamata, vila de maioria tutsi uma
hora ao sul de Kigali, e Domithilla está sentada na porta do
que era a igreja do lugar conversando com duas outras sobreviventes. Mariciana Kakuze, 75,
se fingiu de morta junto a cadáveres durante dois dias para escapar dos assassinos.
Collette Karebwayizuba, 55,
conta ter sido seguidamente estuprada na época e reclama de
problemas recorrentes de saúde desde então. "Ninguém nunca me pediu desculpas", diz.
A igreja que domina a vila de
ruas de chão batido é hoje um
dos muitos memoriais do genocídio espalhados pelo país.
Dentro da antiga igreja, há fileiras de crânios expostos em prateleiras e um único caixão. "É
de uma menina de nove anos,
que morreu quando lhe enfiaram uma lança na vagina, que
saiu pelo crânio. Mas o corpo
não foi retalhado", diz a administradora do memorial.
Nyamata é uma das muitas
vilas traumatizadas pelo genocídio de 1994. Mais ainda pelo
fato de que, neste país intensamente católico, a proteção que
se imaginava que locais santos
trariam não se confirmou.
Naquela igreja, milhares de
tutsis se espremeram por nove
dias num espaço em que caberiam no máximo 500 pessoas. A
ordem para a matança veio em
16 de abril de 1994. Primeiro,
foram jogadas granadas. Depois, os milicianos invadiram
atirando com fuzis e atacando
com machados, facões e lanças.
Ao menos 30 igrejas por todo
o país acabaram servindo de armadilha, muitas vezes com a
omissão ou até a colaboração
dos líderes religiosos locais.
"Em Nyamata, havia dois padres belgas, loiros, que cuidavam da paróquia, e foram removidos para o Burundi nos
primeiros dias do genocídio. As
pessoas foram abandonadas",
diz Jules Clement Karangira,
39, que perdeu os pais e cinco
irmãos durante a matança.
Cinco líderes religiosos foram indiciados pelo tribunal da
ONU por estarem entre os organizadores do genocídio. Centenas de outros foram acusados
de participação.
Ao lado do memorial das vítimas em Nyamata, uma nova
igreja foi construída. "As três
missas dominicais sempre lotam", diz o seminarista Jean
Claude, 26, que tem como uma
de suas tarefas oferecer aconselhamento espiritual e psicológico a pessoas de sua idade.
"Uma geração inteira, que está
chegando aos 20 ou 25 anos,
cresceu com sérios traumas."
A responsabilidade da igreja
existe, concorda o seminarista,
mas é errado fazer generalizações. "Se houve religiosos que
colaboraram com os crimes, foi
por decisão individual deles.
Não é porque um participou
que todos participaram."
(FZ)
Texto Anterior: Hotel de filme faz marketing da catástrofe Próximo Texto: Colômbia diz que líder das Farc está morto Índice
|