São Paulo, domingo, 25 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Igreja não protegeu ruandeses de massacre

EM NYAMATA (RUANDA)

Aos 72 anos, Domithilla Mukarubuga retira lentamente um turbante que lhe cobre a cabeça para exibir um troféu: uma cicatriz de cerca de cinco centímetros, numa parte afundada do crânio, resultado de uma machadada que levou de um membro da milícia hutu interahamwe em abril de 1994.
"Tentaram me matar, mas eu sobrevivi", conta, com ar desafiador. Cinco de seus filhos não tiveram a mesma sorte.
É manhã de sol forte em Nyamata, vila de maioria tutsi uma hora ao sul de Kigali, e Domithilla está sentada na porta do que era a igreja do lugar conversando com duas outras sobreviventes. Mariciana Kakuze, 75, se fingiu de morta junto a cadáveres durante dois dias para escapar dos assassinos.
Collette Karebwayizuba, 55, conta ter sido seguidamente estuprada na época e reclama de problemas recorrentes de saúde desde então. "Ninguém nunca me pediu desculpas", diz.
A igreja que domina a vila de ruas de chão batido é hoje um dos muitos memoriais do genocídio espalhados pelo país. Dentro da antiga igreja, há fileiras de crânios expostos em prateleiras e um único caixão. "É de uma menina de nove anos, que morreu quando lhe enfiaram uma lança na vagina, que saiu pelo crânio. Mas o corpo não foi retalhado", diz a administradora do memorial.
Nyamata é uma das muitas vilas traumatizadas pelo genocídio de 1994. Mais ainda pelo fato de que, neste país intensamente católico, a proteção que se imaginava que locais santos trariam não se confirmou.
Naquela igreja, milhares de tutsis se espremeram por nove dias num espaço em que caberiam no máximo 500 pessoas. A ordem para a matança veio em 16 de abril de 1994. Primeiro, foram jogadas granadas. Depois, os milicianos invadiram atirando com fuzis e atacando com machados, facões e lanças.
Ao menos 30 igrejas por todo o país acabaram servindo de armadilha, muitas vezes com a omissão ou até a colaboração dos líderes religiosos locais.
"Em Nyamata, havia dois padres belgas, loiros, que cuidavam da paróquia, e foram removidos para o Burundi nos primeiros dias do genocídio. As pessoas foram abandonadas", diz Jules Clement Karangira, 39, que perdeu os pais e cinco irmãos durante a matança.
Cinco líderes religiosos foram indiciados pelo tribunal da ONU por estarem entre os organizadores do genocídio. Centenas de outros foram acusados de participação.
Ao lado do memorial das vítimas em Nyamata, uma nova igreja foi construída. "As três missas dominicais sempre lotam", diz o seminarista Jean Claude, 26, que tem como uma de suas tarefas oferecer aconselhamento espiritual e psicológico a pessoas de sua idade. "Uma geração inteira, que está chegando aos 20 ou 25 anos, cresceu com sérios traumas."
A responsabilidade da igreja existe, concorda o seminarista, mas é errado fazer generalizações. "Se houve religiosos que colaboraram com os crimes, foi por decisão individual deles. Não é porque um participou que todos participaram." (FZ)


Texto Anterior: Hotel de filme faz marketing da catástrofe
Próximo Texto: Colômbia diz que líder das Farc está morto
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.