São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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AMÉRICA LATINA

Líder nas pesquisas, a presidenciável esquerdista Elisa Carrió diz ser perseguida como o candidato petista

Candidata argentina se compara a Lula

"Clarin" - 27.dez.2001
Elisa Carrió, candidata à Presidência da Argentina que lidera as pesquisas de intenção de voto


ROGERIO WASSERMANN
DA REDAÇÃO

Há meses na liderança das pesquisas de intenção de voto para a Presidência da Argentina, a deputada Elisa Carrió, 45, credita o recente avanço do peronista Adolfo Rodríguez Saá (presidente por uma semana no fim do ano passado) aos ataques que vem sofrendo e se compara ao candidato do PT à Presidência do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva.
"O atual regime fez comigo algo muito parecido ao que aconteceu com Lula no Brasil. Ou seja, o Estado me colocou como inimiga e me castigou muito duramente", disse ela na sexta-feira à tarde em entrevista à Folha, por telefone, de Buenos Aires.
Apesar disso, ela disse confiar numa vitória nas eleições de março e afirmou que promoverá uma devassa para investigar os responsáveis pela atual crise.
Num país no qual os políticos têm sido alvo de agressões nas ruas, tal o grau de insatisfação provocado pela pior crise econômica de sua história, Carrió aparece como exceção, graças ao seu discurso de combate à corrupção e à tentativa de se desvincular da imagem dos políticos tradicionais -apesar de ter feito carreira na tradicional UCR (União Cívica Radical, partido do ex-presidente Fernando de la Rúa), antes de criar, no ano passado, o seu próprio partido, ARI (Alternativa por uma República de Iguais).
Seu principal feito foi presidir a comissão parlamentar que investigou crimes de lavagem de dinheiro, no ano passado, que disparou acusações contra diversas figuras de destaque da política do país -com destaque para o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999), classificado por ela como "o chefe da máfia". Leia a seguir trechos da entrevista:

Folha - Qual a solução para a crise política e econômica argentina?
Elisa Carrió -
A primeira solução é resolver a crise institucional. Para enfrentar o problema da fome e da pobreza e reconstruir as instituições econômicas, é necessário ter instituições legítimas.

Folha - Então a falta de confiança dos argentinos nos políticos é um obstáculo para a solução da crise?
Carrió -
Na realidade, o saque da nação produzido por parte de seus dirigentes econômicos e políticos é a causa da crise de confiança e institucional que vive o país. Aqueles que saquearam não podem ser aqueles que vão reconstruir.

Folha - E essa crise de confiança também não a atinge? A sra. construiu sua carreia política num partido tradicional como a UCR...
Carrió -
Tenho sete anos de exercício da política. Quatro anos num partido tradicional e três anos brigando dentro do partido para mudar as práticas.

Folha - Então a sra. não se considera uma política tradicional?
Carrió -
Nunca houve uma votação no Congresso na qual eu votasse contra os interesses da nação. E isso me custou o afastamento do meu partido. Não tive compromisso com nenhum dos fatos que levaram o país à ruína. Ao contrário. Fui eu quem os investigou e os denunciou. Fazendo oposição ao meu próprio partido, que era governo.

Folha - Sua candidatura perdeu apoio, segundo as últimas pesquisas. A que a sra. credita isso?
Carrió -
Tem a ver com o avanço do autoritarismo. O atual regime fez comigo algo muito parecido ao que aconteceu com Lula no Brasil. Ou seja, o Estado me colocou como inimiga e me castigou muito duramente. Ao mesmo tempo, houve avanço autoritário, com repressão e mortes.
Na verdade, eu não caí nas pesquisas, estou estagnada. Minha candidatura perdeu só dois pontos. Eu estanquei, e a candidatura de Rodríguez Saá cresceu.
Mas vamos ganhar. Essa é uma briga, mais do que uma corrida presidencial. É uma briga contra o atual regime. E nós estamos à frente dessa batalha, que tem avanços e retrocessos. Neste momento, estamos no refluxo do regime, que foi autoritário ao querer estabelecer suas condições. Mas, ao final de setembro, o quadro vai estar mais claro, vamos estar à frente nas pesquisas.

Folha - Seus opositores dizem que a sra. construiu uma imagem de inimiga da corrupção, mas que não tem propostas concretas para a recuperação econômica do país. Quais são suas propostas?
Carrió -
Em primeiro lugar, um sistema de redistribuição de renda muito claro, com subsídios de cidadania para a infância e combate à fome e à pobreza. São 60 pesos (R$ 52) por criança, dados às mães, num programa semelhante ao que há no Brasil, com a Bolsa-Escola, desenvolvido pelo PT. Em segundo lugar, queremos um claro desenvolvimento da pequena e da média empresa, uma reforma agrária na Argentina e uma reforma tributária.
Na realidade, o único programa apresentado até agora foi o nosso, A verdade é que nossos adversários não podem reconhecer que nós temos um programa econômico. Porque, se reconhecerem que eu, adversária do regime financeiro que saqueou a Argentina, tenho um programa, eles me entregarão a Presidência.

Folha - No ano passado, a sra. declarou ser contra o pagamento da dívida externa e sugeriu o rompimento com o FMI. A sra. segue com essas propostas?
Carrió -
Eu nunca defendi isso. O que denunciamos foi a grande fraude financeira que significou a megatroca [de títulos da dívida pública, promovido pelo então ministro da Economia, Domingo Cavallo, no ano passado".
Nós nos retiramos do Parlamento quando Adolfo Rodríguez Saá foi eleito presidente, por falta de idoneidade moral do candidato. Então não estávamos lá naquele momento, quando se declarou a moratória.
Acreditamos que a Argentina tenha de ter uma saída econômica independente, com uma relação difícil com o FMI, mas que temos de manter.
Nossa idéia não é festejar nenhuma moratória. Propomos uma negociação direta, com redução da dívida. Não estamos dizendo que não vamos pagar nada. Vamos para uma negociação justa e questionamos a parte da dívida que foi resultado de fraude financeira.

Folha - Seu eventual governo promoverá algum tipo de "operação mãos limpas"?
Carrió -
Se nós ganharmos, o processo de investigação que começamos neste país vai continuar. A impunidade vai acabar e muitos vão terminar em Devoto [unidade penitenciária em Buenos Aires".

Folha - Na comissão parlamentar de investigação de lavagem de dinheiro que a sra. presidiu, houve muitas acusações contra personagens importantes, mas a sra. foi acusada de utilizar documentos falsos, como numa denúncia de uma suposta conta de Domingo Cavallo no exterior.
Carrió -
Nós dissemos que tínhamos documentos que poderiam ser parte de uma operação de contra-inteligência e apresentamos à Justiça para que investigassem. Dissemos que os documentos sugeriam que Menem e Ramón Hernández [seu ex-secretário particular" teriam contas na Suíça, o que finalmente ficou comprovado. E a Justiça segue investigando os bens de Cavallo. Eu acho que isso fez parte de uma dupla operação de inteligência. Entregamos à Justiça para que investigasse sua veracidade.
Hoje, já há provas de que alguns fatos, talvez não exatamente como estão nos documentos, estão certos. A conta de Menem é certa, a conta de Ramón Hernández é certa. Com outros números, mas no mesmo lugar.

Folha - As denúncias feitas pela comissão não tiveram muitas consequências em termos de processos ou prisões. Por quê?
Carrió -
O que conseguimos com a comissão, depois de um ano, foi que houvesse dez banqueiros processados, três presos e dois com captura internacional. Ainda falta, mas, para um ano de investigação, é muito.

Folha - E os políticos mais graduados que foram acusados?
Carrió -
Estão todos sendo investigados. Ainda não há presos, mas estão sendo investigados. Menem já foi convocado à Justiça por causa das contas na Suíça. Tudo vai ser revelado num prazo de 60 dias a um ano.

Folha - A sra. acredita no fim da impunidade?
Carrió -
Se eu for presidente, a impunidade vai acabar.

Folha - E se não for?
Carrió -
Vamos seguir lutando. De todas as maneiras, estamos construindo a vitória.

Folha - A sra. se identifica com algum político ou algum partido no Brasil?
Carrió -
Há muita gente no meu partido que tem vínculos de muito tempo com o Partido dos Trabalhadores. Temos muitos deputados que pertencem a centrais de trabalhadores argentinas e que têm vínculos com o PT.

Folha - E a sra. tem alguma preferência em relação aos candidatos presidenciais brasileiros? A eleição de um ou de outro influenciaria na relação entre os dois países no caso de a sra. ser eleita?
Carrió -
Reconhecerei a política externa do Brasil seja quem for o presidente. Admiro a política do Itamaraty para defender a dignidade e a soberania do Brasil. É um país que mantém as bandeiras do continente com dignidade.

Folha - Quais os seus planos em relação ao Mercosul e à Alca?
Carrió -
Apostamos no Mercosul para uma nova democracia e uma nova prosperidade para a América Latina. Acredito que todas as relações tenham de ser baseadas a partir de uma relação estratégica no Cone Sul. Se eu for presidente, a Argentina não vai seguir sendo usada pelos EUA na América Latina para romper com o Mercosul ou para formar a Alca.

Folha - A sra. vê alguma semelhança entre a crise pela qual passa o Brasil e a crise que levou a Argentina à atual situação?
Carrió -
Há diferenças importantes. O Brasil é um país com indústrias, com desenvolvimento econômico importante. A Argentina foi uma bolha financeira. O Brasil tem uma política industrial, a Argentina carece de uma.


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