São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"GUERRA SUJA"

Para o brasilianista, Washington retém documentos sobre regimes militares latino-americanos que o comprometem

EUA omitem elo com tortura, diz Skidmore

MARCELO STAROBINAS
DA REDAÇÃO

Embora tenha liberado na semana passada mais de 4.600 documentos reveladores sobre suas relações com a ditadura militar da Argentina (1976-83), o governo dos EUA seleciona com cautela os fatos que deseja tornar público.
"O mais importante para o Departamento de Estado é provar que não houve ligação direta entre o governo americano e os torturadores", diz Thomas Skidmore, historiador brasilianista norte-americano, professor emérito da Universidade Brown, nos EUA.
Para ele, as provas da ajuda de Washington à repressão na América Latina estariam nos arquivos da CIA e do Pentágono, que não foram liberados.
Os novos documentos trazem detalhes sobre as violações dos direitos humanos durante a "guerra suja" na Argentina. Mostram também a extensão dos programas de cooperação entre os regimes militares sul-americanos -o Brasil incluído- para a repressão, no que ficou conhecido como Operação Condor.
Skidmore, autor de, entre outros livros, "Brasil: De Getúlio a Castelo" (ed. Paz e Terra, 1969) e "Brasil: De Castelo a Tancredo" (idem, 1988), conversou com a Folha, por telefone, sobre a importância do arquivo.

Folha - O sr. acha que os arquivos jogam nova luz sobre esse período?
Thomas Skidmore -
É difícil dizer, pois o Departamento de Estado é mais ou menos fácil [de liberar documentos". Há também a CIA, o Pentágono e o Tesouro. Sem dúvida houve forte ligação entre a CIA e os serviços de inteligência latino-americanos. Mas essas provas documentais são muito difíceis de se obter.
Já se conseguiram, por exemplo, provas do envolvimento dos militares americanos na Guatemala. O governo dos EUA pagou a um general guatemalteco -um torturador- para que desse informações sobre o seu país.
O interessante é ver como foi possível aos países cair na ditadura e depois sair dela. Os EUA sempre deram cobertura às ditaduras. Ficou um sentimento de culpa -ou pelo menos uma parte do governo teve esse sentimento.
Houve uma luta entre as repartições do governo: entre o Pentágono, a CIA, o Departamento de Estado e a USIA [United States Information Agency, agência de propaganda americana". A política americana não foi homogênea.

Folha - Os documentos liberados mostram que os EUA exigiam dos argentinos atenção aos direitos humanos como condição para ter crédito no FMI e ajuda militar. O sr. crê que a situação brasileira tenha sido semelhante nesse aspecto?
Skidmore -
Provavelmente sim. Isso não é dito explicitamente. O governo americano sempre ficou num dilema. Ele queria barrar o comunismo e, ao mesmo tempo, promover a democracia.
Na década de 70, achou que fosse mais importante impedir a penetração comunista e sacrificou os direitos humanos.

Folha - Houve mudanças nessa política após a chegada de Jimmy Carter à Presidência, em 1977?
Skidmore -
Houve sim. Ele estava buscando uma identidade para a sua Presidência. Escolheu os direitos humanos. Mas isso foi completamente desvirtuado pela invasão soviética do Afeganistão.
O governo Carter conseguiu irritar os governos brasileiro e argentino. Além disso, houve uma irritação maior quando a a primeira-dama foi ao Brasil para condenar as violações aos direitos humanos. Isso irritou muito, pois era algo sem precedentes numa nação machista como o Brasil.

Folha - O Departamento de Estado seleciona quais documentos libera. Essa triagem, no caso argentino, teve como objetivo apresentar uma boa imagem dos EUA?
Skidmore -
Provavelmente. O mais importante para o Departamento de Estado é provar que não houve ligação direta entre o governo americano e o torturador. Isso sempre foi um pesadelo. O certo é que as provas dessas ligações existem nos arquivos do Pentágono e da CIA.

Folha - Os EUA estavam envolvidos com torturadores?
Skidmore -
Ninguém conseguiu provar uma ligação direta entre o governo americano e o torturador brasileiro, argentino ou chileno. Mas é óbvio que houve muita troca de informações. É bem possível que a CIA tenha fornecido equipamento para a repressão. Por exemplo: escutas telefônicas. Os americanos adoram tecnologia. Não tenho provas disso, mas tenho certeza de que houve ajuda técnica dos americanos. Também ofereceram treinamento, mas não sobre como torturar. Os militares brasileiros e argentinos, infelizmente, não precisam de aulas americanas para praticar tortura.

Folha - Qual o papel do secretário de Estado Henry Kissinger (1973-1977) com relação às ditaduras latino-americanas?
Skidmore -
Kissinger é um homem muito inteligente, que tem muita capacidade para iludir a imprensa. Ele sempre criou a impressão de que não tinha nada a ver com os acontecimentos mais desagradáveis da repressão na América Latina. O fato é que ele é um realista que gosta de dizer que é um idealista. Mas não tenho dúvidas de que ele estava muito bem informado sobre tudo.

Folha - Kissinger deveria ser julgado por seu envolvimento com as ditaduras da América Latina?
Skidmore -
Acho que isso depende dos países em questão. Cada país precisa encontrar uma resposta a isso. É uma questão da política e da psicologia, não só da lei. Depende da política de cada país.

Folha - O governo brasileiro tem interesse em abrir os arquivos do Departamento de Estado sobre aquela época?
Skidmore -
Duvido, pois sempre há nomes lá dentro que são muito delicados. Sempre aparece o nome de alguém que ninguém sabia, que é um vilão na história.

Folha - Qual a atuação dos governos Geisel (1974-79) e Figueiredo (79-85) no que diz respeito aos direitos humanos e à cooperação com outros países latino-americanos para a repressão?
Skidmore -
Geisel parou a tortura dos presos políticos no Brasil. Apesar disso, ele não gostava de falar sobre direitos humanos. Figueiredo continuou com a abertura e fez a tentativa de expulsar os torturadores do Exército. Tentou limpar as Forças Armadas.

Folha - Os documentos mostram que, nos governos Geisel e Figueiredo, a Argentina tinha liberdade para prender dissidentes seus no território brasileiro, com a ajuda do Brasil. Geisel e Figueiredo tinham conhecimento dessas ações? Os serviços de segurança tinham condições de cooperar sem o conhecimento do presidente?
Skidmore -
Figueiredo era muito mole, não gostava de despachar com seus assessores. Mas, em geral, esses fatos importantes são do conhecimento dos líderes políticos. Eles eram generais, e a segurança estava sob o controle das Forças Armadas. Tinham controle do aparato militar. O mais provável é que soubessem e autorizassem essas atividades.

Folha - Que comparação se pode fazer entre Brasil e Argentina no período de 1975 a 1984?
Skidmore -
A repressão na Argentina foi pior. Houve no Brasil algo que quase não existiu na Argentina: os sobreviventes da tortura. Muitos brasileiros saíram do país depois de torturados. Na Argentina, a saída era direto para o cemitério ou para o avião que jogava corpos no oceano. O Brasil saiu mais coerente como sociedade do que a Argentina, que tem mais cicatrizes e desequilíbrios.


Texto Anterior: Candidata argentina se compara a Lula
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.