São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EUA estimulam a heróica história dos passageiros de um dos aviões do 11 de setembro, mas as lacunas dessa versão inspiram teorias menos gloriosas

O mistério do vôo 93

JOHN CARLIN
DO "THE INDEPENDENT",

EM SHANKSVILLE, PENSILVÂNIA
O destino do vôo 93 da United Airlines, o último dos quatro aviões sequestrados nos EUA a cair em 11 de setembro, não tem mistério para Lee Purbaugh. Ele era o único presente no campo onde o avião caiu.
"Houve um som incrivelmente alto, de estrondo ou ronco, e lá estava o avião, logo ali, bem em cima da minha cabeça, uns 16 m acima de mim, talvez", diz Purbaugh, que trabalha num ferro-velho ao lado do local onde ocorreu a queda. "Foi só uma fração de segundo, mas a impressão era de que ele estava andando em rotação lenta, como se levasse uma eternidade. Eu vi o avião balançar. Então, de repente, ele se inclinou e mergulhou de nariz no chão, com uma explosão enorme."
O avião foi pulverizado. Wally Miller, magistrado de Shanksville, um canto da Pensilvânia até então esquecido, foi o responsável legal por recolher os restos mortais e determinar as causas da morte. "Emiti as certidões de óbito", conta Miller. "Coloquei "homicídio" nas certidões dos passageiros e "suicídio" nas dos terroristas."
Mas Miller admite que, em última análise, não pode comprovar o que aconteceu, só deduzir. Ninguém sabe exatamente o que levou o vôo 93 a cair. Se existem pessoas que sabem o que aconteceu, elas não estão falando.

Lenda instantânea
A escassez de fatos comprovados não impediu a criação de uma lenda instantânea que o governo e a imprensa dos EUA tiveram prazer em propagar e que o público estava ansioso por aceitar: informados por seus celulares sobre a notícia dos outros três aviões sequestrados, os passageiros decidiram que, se não podiam salvar a própria pele, ao menos fariam o que era patriótico e poupariam as vidas daqueles que eram os alvos dos terroristas. Assim, eles invadiram a cabine do piloto, onde um terrorista estava nos controles, e, na luta que se seguiu, provocaram a queda do avião.
O governo saudou os "heróis do vôo 93" e tem repetidas vezes proposto essa versão. A mesma coisa foi feita pelos grandes jornais e emissoras de TV nacionais.
O "New York Times", normalmente um modelo de precisão, publicou a seguinte sentença extraordinariamente imprecisa em 22 de setembro, ao descobrir, de fontes "oficiais" não identificadas, que o gravador de voz da cabine do avião tinha registrado "uma luta desesperada e selvagem" no avião: "E, embora ele [o gravador" não tenha fornecido um quadro claro ou completo, parece certo que ocorreu um confronto caótico que, aparentemente, levou à queda do jato".
A revista "Vanity Fair", baseando-se em poucas informações a mais do que as que tivera o "Times", publicou um relato detalhado sobre o que aconteceu no vôo 93, que, segundo a revista, "pode ser lembrado como uma das maiores histórias de heroísmo já contadas". Dois meses mais tarde, a "Newsweek" teve acesso ao que seria uma transcrição parcial do registro do gravador de voz. Com isso, a revista narrou a história com detalhes ainda mais vívidos, hollywoodianos e patrióticos. Os passageiros eram "soldados da cidadania, que, como seus antepassados, se ergueram para desafiar a tirania", disse a "Newsweek".
Nada impede que a história heróica seja verídica. Talvez a lenda realmente corresponda aos fatos. Com certeza, com base no registro dos telefonemas feitos desde o avião, é indiscutível que vários passageiros tiveram a intenção de realizar atos de coragem. Mas o que esses atos realmente foram não é sabido -ou é sabido apenas por muito pouca gente.

Outras versões
A ausência de informações oficiais levou a uma discussão animada e, com frequência, bem fundamentada no meio extra-oficial da internet (veja o site www.flight93crash.com). Mas também há uma série de pessoas no setor da aviação convencidas de que existem outras explicações. Uma série de perguntas importantes ficou sem respostas -perguntas baseadas em evidências e também na manifesta falta de transparência das autoridades. E a mídia nacional americana vem mostrando uma curiosa relutância em formulá-las.
As teorias alternativas, ambas negadas pelas Forças Armadas e pelo FBI, são: a) o vôo 93 foi derrubado por um avião do governo; e b) uma bomba explodiu a bordo dele (nos telefonemas que deram, os passageiros disseram que um dos sequestradores levava algo que parecia ser uma bomba). Se dúvidas permanecem e se as teorias conspiratórias correm soltas, isso se dá em grande medida porque as autoridades não ofereceram respostas diretas às perguntas sobre quatro mistérios:
1) o fato de os destroços do avião terem se espalhado por uma área extensa -talvez por causa de uma explosão ocorrida antes da queda. Cartas -o vôo 93 transportava 3.400 kg de correspondência até a Califórnia- e outros papéis do avião foram encontrados a até 13 km de distância. Uma parte de um motor pesando 1 t foi encontrada a 2.100 m do avião. Foi o mais pesado pedaço isolado recuperado do desastre. O resto do avião se desintegrou em pedaços não maiores do que 5 cm, fato que condiz com um impacto de 800 km/h, conforme se calcula. Outros destroços do avião foram encontrados a 3 km;
2) a localização de jatos da Força Aérea, que podem ou não ter estado suficientemente próximos para disparar um míssil. O que o governo admite é que os primeiros caças com a missão de interceptar aviões decolaram às 8h52; que outro grupo de caças decolou da base de Andrews, perto de Washington, às 9h35 -exatamente o horário em que o vôo 93 descreveu um desvio de quase 180 graus, voltando-se para Washington, e que um sequestrador foi ouvido por controladores do tráfego aéreo dizendo que havia "uma bomba a bordo". O vôo 93, cuja trajetória ameaçadora foi divulgada quase imediatamente pela mídia, levou mais 31 minutos para cair. Deixando de lado a conclusão lógica de que pelo menos um F-16 -que, às 9h40, estava em Washington, a 201 km de distância do vôo 93, o que significava dez minutos de distância (ou menos, se voasse em velocidade supersônica)- deveria tê-lo alcançado antes das 10h06, existe a seguinte evidência de um controlador de vôo, divulgada alguns dias mais tarde num jornal de New Hampshire: que um F-16 perseguiu o jato da United e "deve ter assistido a tudo".
Cinco dias depois, o vice-presidente Dick Cheney admitiu que o presidente Bush tinha autorizado os pilotos da Força Aérea a abater aviões comerciais sequestrados;
3) um telefonema saído do avião, cujo teor não corresponde inteiramente à lenda heróica. A Associated Press informou em 11 de setembro que, oito minutos antes da queda, um passageiro apavorado tinha ligado para 911. Ele disse ao operador Glen Cramer que se trancara num dos banheiros do avião. Cramer disse que o passageiro falou com ele por um minuto: "Ele estava muito apavorado. Disse que achava que o avião estava caindo. Ele ouviu alguma espécie de explosão e viu fumaça branca saindo do avião. E então perdemos o contato";
4) relatos de testemunhas oculares mencionam um "avião misterioso" que sobrevoou o local da queda a baixa altitude, logo após o impacto. Lee Purbaugh é um entre pelo menos meia dúzia de pessoas que relataram ter visto um segundo avião voando baixo e numa trajetória irregular, a uma altitude pouco superior à das copas das árvores, sobre o local da queda, minutos após a queda do avião da United. Elas descrevem o avião como um jato branco e pequeno, com motores traseiros e sem marcas perceptíveis. Purbaugh, que esteve na Marinha, disse não acreditar que fosse um avião militar. Seja como for, a presença do avião é um enigma.

Explicações do governo
Como o governo americano respondeu às dúvidas acima? Das seguintes maneiras:
1) os papéis encontrados a 13 km de distância foram carregados por um vento de 16 km/h; a parte do motor do jato voou mais de 2.000 m devido à força do impacto do avião com o solo. A conclusão do FBI: "Não foi encontrado nada inconsistente com a hipótese de que o avião tenha se chocado com o solo ainda intacto". Especialistas em aviação vêem essa hipótese como extremamente duvidosa. Um deles expressa espanto ante a idéia de que cartas e outros papéis pudessem ter permanecido no ar por quase uma hora;
2) os jatos da Força Aérea estavam a caminho, mas não chegaram a tempo, segundo o general Richard Myers. Ele reconhece que os caças aproximaram-se do vôo 93 "momentos" antes de sua queda, mas diz que não o abateram. Isso leva à pergunta de por que razão eles não puderam chegar mais cedo para interceptar um avião que claramente tinha terroristas a bordo e que estava voando em direção a Washington, mais de uma hora depois que outro avião da United Airlines se chocara com o a segunda torre do World Trade Center. O relato que saiu no jornal de New Hampshire e o da CBS não foram explicados, e os controladores de tráfego aéreo de Cleveland que acompanharam no radar os últimos minutos do vôo 93 foram proibidos de falar;
3) o FBI confiscou a fita da conversa, e o operador Glen Cramer recebeu ordens de se calar;
4) a explicação dada pelo FBI para o avião misterioso, depois de, num primeiro momento, negar sua existência, não tranquiliza muito -pelo contrário, reforça as desconfianças de que alguma coisa estaria sendo acobertada.
O avião em questão era um jatinho comercial civil, um Falcon, que estava voando a 32 km de distância do vôo 93 e que as autoridades solicitaram que fosse observar e transmitir as coordenadas do local da queda "às equipes de emergência".
A razão pela qual isso soa tão implausível é que, em primeiro lugar, às 10h06 do dia 11 de setembro, todas as aeronaves não militares voando tinham recebido ordens claras e inequívocas, mais de meia hora antes, para aterrissar no aeroporto mais próximo; segundo, que, tantos eram os telefonemas para o 911 de pessoas da região de Shanksville, que teria sido desnecessário alguém fornecer coordenadas aéreas; e, em terceiro lugar, com os jatos F-16 supostamente na área, parece improvável que, num momento de incerteza, quando ninguém sabia ao certo se ainda havia aviões sequestrados no céu, as Forças Armadas fossem pedir ajuda a um avião civil na área.
O que desperta mais suspeitas é o fato de ninguém mais ter identificado o piloto ou os passageiros do suposto jatinho Falcon. Havia um outro avião no ar naquele momento -um monomotor Piper. Seu piloto, Bill Wright, disse que estava a pouco menos de 5 km de distância, tão perto que conseguiu enxergar o emblema da United no avião. De repente, recebeu ordens de se afastar e aterrissar.

Míssil
Alguns teóricos da conspiração dirão que o vôo 93 foi abatido por um míssil, possivelmente um míssil que busca o calor e que poderia ter alvejado um dos motores do avião -teoria consubstanciada pelo deslocamento por 2.100 m da peça do motor, mas refutada por diversos relatos oculares.
Outros podem dizer que o avião foi vítima de interferência eletromagnética. Numa série de artigos para o "New York Review of Books", Elayne Scarry, acadêmica de Harvard, diz que a Força Aérea e o Pentágono já conduziram pesquisas extensas sobre "aplicativos de guerra eletrônica" dotados, possivelmente, da capacidade de perturbar intencionalmente os mecanismos de um avião de modo a provocar, por exemplo, um mergulho incontrolável.
Scarry também relata que alguns aviões de carga C-130 já vêm equipados com essas armas. O FBI afirmou que, além do enigmático Falcon, havia um C-130 num raio de 40 km do vôo 93 quando ele caiu. Segundo Scarry, a Força Aérea já instalou "conjuntos eletrônicos" em ao menos 28 de seus C-130. Esses equipamentos são capazes de emitir sinais que impedem o funcionamento de outros aparelhos.
Mas nada disso nos autoriza a questionar a bravura de passageiros como Tom Burnett, que tinha três filhas e disse à sua mulher, Deena, pelo telefone, que ele e os outros passageiros iam "fazer alguma coisa", senão os terroristas iriam "atirar este avião no chão".
Se existem realmente outras provas que fundamentem a narrativa heróica, surpreende que as autoridades ainda não as tenham divulgado. Bravura, em todo caso, existiu. Sabemos disso.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Chuvas: Chineses lutam contra perigo de enchente
Próximo Texto: Fé e política: Religião volta ao debate público nos EUA
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.