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América Latina terá onda de protestos, diz Chávez
Presidente venezuelano diz que resultados sociais do neoliberalismo "selvagem" vão provocar manifestações, recusa acusação de golpista e volta a pedir atuação do Brasil para enfrentar crise colombiana
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ELIANE CANTANHÊDE
enviada especial a Caracas
O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, condena o ""neoliberalismo selvagem" adotado na
América Latina e prevê que manifestações populares vão se multiplicar pelo continente, para forçar
mudanças e novos modelos.
""Do México à Argentina, passando pelo Caribe, há processos
assim, os povos buscam suas próprias maneiras de levantar suas
bandeiras", disse Chávez em entrevista de quase duas horas à Folha, no seu gabinete do Palácio de
Miraflores, em Caracas.
Questionado sobre a ""Marcha
dos 100 Mil", programada para
amanhã em Brasília, ele tentou ser
diplomático, mas depois disse
que os presidentes latino-americanos ""devem ouvir, processar e
governar de acordo com o clamor
popular". E acrescentou: ""Nós (os
presidentes) estamos indo de reunião de cúpula em reunião de cúpula, e os nossos povos, de abismo em abismo".
Ele criticou a adoção ""de maneira dogmática de um modelo imposto que sataniza a proteção à
indústria nacional, aos subsídios
essenciais, o direito de intervenção do Estado na economia. O
mercado ganha status de Deus".
Apesar das críticas, o presidente
conversa com o FMI e não descarta um acordo: ""Qualquer um pode conversar com Deus e com o
diabo, desde que não abra mão de
seus princípios", disse.
Tenente-coronel da reserva,
Chávez enalteceu a posição do
Brasil na América Latina e pediu
união para evitar ""o intervencionismo" na Colômbia.
Folha - Depois de atentar contra o governo de Andrés Peres,
o sr. aceita a classificação de
golpista?
Hugo Chávez -A rebelião militar de 4 fevereiro de 1992 foi produto da rebelião popular de 1989,
o ""caracazo". Nada tem a ver com
golpe de Estado, com golpismo,
com o militarismo, os gorilas da
Venezuela, como dizem por aí.
Fiquei preso dois anos. Quando
saí, em 1994, um jornalista me
perguntou: "E agora?" Eu respondi: ""Agora, nós vamos ao poder".
E seguimos o caminho eleitoral. A
face pacífica de uma revolução
que começou violenta.
Folha - Quando os militares assumem o poder político, a gente
sabe como tudo começa, mas
não como acaba. O sr. não teme
essa maldição?
Chávez - Comete um grave erro
quem classifica o processo venezuelano como um processo militar. Eu cheguei aqui por eleições.
Não peguei num só fuzil.
Folha - O sr. é acusado de ter
nomeado militares para cargos-chaves, por exemplo, do Executivo. Não existe um processo de
militarização do governo?
Chávez - Richard Nixon era militar, Eisenhower, George Bush...
todos eles eram militares. Quando eu era tenente-coronel da ativa, tinha mestrado em Ciências
Políticas e dava aulas. O próprio
Andrés Peres nomeou chanceler
um militar, general da ativa, aliás.
Folha - O sr. fez o contrário:
nomeou chanceler um homem
nitidamente de esquerda (Vicente Rangel). Por quê?
Chávez - Porque não vejo muito
claro hoje qual a divisão entre
uma coisa e outra. Acho que o limite se rompeu. Rangel é um homem honesto, de muita capacidade, de muita habilidade, num setor muito difícil para nós.
Folha - E políticos? Qual a participação deles no seu governo?
E qual sua opinião sobre eles?
Chávez - Uma das máximas do
pensador e filósofo alemão Karl
von Clausewitz (1780-1831) diz
que ""a guerra é a continuação da
política por outros meios". Pode-se inverter: a política é a continuação da guerra. Sinto-me um guerreiro da política, um combatente
político. Minha formação de
guerreiro militar tem sido maravilhosamente útil no combate político. Mas é preciso distinguir o
político verdadeiro do politiqueiro, do ""politicucho", do enganador, do ganhador de dólares.
Folha - Esse é o caso da maioria dos políticos venezuelanos?
Chávez -Bem, a maior parte dos
dirigentes são politiqueiros. Havia uma casta que era política e
degenerou em politiqueira, emcorruptos que saquearam, roubaram e destroçaram o país.
Folha - O processo que o sr.
descreve como de resgate é semelhante ao do Peru, onde o
presidente Alberto Fujimori fechou Congresso e Judiciário?
Chávez - Não posso avaliar o
processo no Peru, porque não o
conheço a fundo. Mas posso falar
em geral sobre boa parte dos países da América Latina, onde, neste século, muitos dirigentes políticos se degradaram, perderam noção de projeto político, de país. O
Brasil também viveu processos
traumáticos.
Mas o processo na Venezuela foi mais
profundo.
Quase todos
presidentes
que passaram
por aqui saíram com acusações de corrupção, e comprovadas. Mas
ninguém fez
nada. O que
havia aqui era
uma tumba
moral. Estamos abrindo
uma tumba,
promovendo uma ressurreição.
Folha - Apesar da grande
aprovação popular, o sr. enfrenta reações no Judiciário, no empresariado, na mídia. A queda
de quase 10% na atividade econômica no último trimestre é
uma crise de falta de confiança?
Chávez - Sabe há quantos anos
o Produto Interno Bruto vem
caindo na Venezuela? Há 20 anos,
desde 1979. O que ocorreu é que
acabou o modelo econômico. Tudo isso é resultado da importação
de um neoliberalismo selvagem.
Criou-se aqui um Estado vampiro, que chupava tudo do povo
para servir à corrupção descarada
de uns poucos. Quando ganhei a
eleição, o barril de petróleo custava US$ 7. Hoje, está em US$ 18. Fizemos uma estratégia urgente de
recuperação de preços.
Folha E o sistema financeiro,
pilar do neoliberalismo?
Chávez - A banca levou os juros
a taxas selvagens, que chegaram a
120% no ano passado. Hoje, depois de tanto negociar, os juros
baixaram 11% nesses seis meses.
Precisamos acabar com esse ciclo especulativo, com esse império monetarista.
Folha - Afora a questão do petróleo, que é muito específica
da Venezuela, o sr. acha que esse mesmo modelo prejudica
também praticamente todos os
países da América Latina?
Chávez - Uns mais, outros menos, mas certamente o neoliberal
entrou com força em todo o continente e agravou os problemas. É
uma crise global, que pesa muito
em cada crise nacional. A queda
da atividade econômica é comum
em todos os nossos países.
Temos um modelo que atenta
contra a empresa nacional, que
não leva em conta as potencialidades de cada nação. Ao contrário, sataniza a proteção à indústria nacional, aos subsídios essenciais, o direito de intervenção do
Estado na economia. O mercado
ganha status de Deus. Isso é o
grande responsável pela queda
dos níveis econômicos e sociais de
nosso continente.
Temos de achar um novo caminho para nossos países e nossos
povos. Temos de parar de copiar
automaticamente, de maneira
dogmática, os modelos neoliberais selvagens que nos impõem.
Não se trata de seguir regras dos
EUA, da Rússia, da Alemanha, da
União Européia. Temos que saber
o que é melhor para nós e implementar.
Folha - Na quarta-feira (hoje),
está programada a ""Marcha dos
Cem Mil" sobre Brasília, para
protestar contra o modelo neoliberal, o ciclo monetarista ao
qual o sr. se refere. O sr. apóia?
Chávez - Não emito opinião,
porque respeito o governo e o povo do Brasil. Mas desejo para o
país o melhor.
Folha - O sr. acha que esse tipo
de movimento vai se alastrar
por outros países da América
Latina?
Chávez - Sim, com certeza. Já
houve aqui, inclusive. Creio que
em todos os nossos países, do México até a Argentina, passando pelo Caribe, há processos assim, os
povos buscam suas próprias maneiras de levantar suas bandeiras.
Acho interessante esse tipo de
processo de levantar bandeiras e
creio que os líderes de todo o continente devem ouvir os clamores
populares. Faço essa advertência,
ou autocrítica: ""Nós andamos de
reunião de cúpula em reunião de
cúpula, e nossos povos, de abismo
em abismo". Devemos ouvir, processar e governar em função do
clamor dos nossos povos.
Folha - Além dos planos estruturais, o sr. tem um plano de
emergência para combater o
desemprego?
Chávez - Eu sou um neo-estruturalista. Tenho as duas coisas,
um plano estratégico e um plano
emergencial, o Bolívar 2000. De
um lado, atenção à saúde, educação, aos excluídos. De outro, estamos abrindo mão de impostos
para que os bancos possam investir em alguns desses programas.
Além disso, temos projetos rodoviários, ferroviários e na área
de gás, energia, minérios, petroquímica, além de uma revolução
na área de petróleo. Um desses
projetos de petróleo inclui o Brasil, para cooperação nas áreas de
pesquisa, refino e distribuição.
Folha -Quantos são os desempregados hoje?
Chávez - Calculamos em torno
de 15%, o que dá uns 2,5 milhões
de desempregados.
Folha - Sua disposição de dialogar com a guerrilha colombiana e a suspeita de que o sr. defende desapropriações não assustam os investidores internacionais?
Chávez - Se
eu fosse investidor internacional estaria
louco para investir na Venezuela. A segurança jurídica
vale ouro. A
Justiça aqui estava podre,
mas estamos
extirpando esse tumor, essa
podridão, e poderemos logo
oferecer segurança jurídica
aos nossos investidores de todo o
mundo.
Quanto a desapropriações: nosso projeto de Constituição defende, ao contrário de ameaçar a propriedade privada. Só que ela deve
cumprir função social. E quanto à
guerrilha: até o presidente da Bolsa de Nova York foi à montanha
conversar com
os líderes da
guerrilha, por
que não posso
ir?
Minha intenção é contribuir para a paz.
Se for preciso
falar com o Satanás para isso,
falarei com ele
sem nenhum
problema.
Se o governo
do meu amigo
(Andrés) Pastrana não quer
que eu vá à Colômbia conversar com a guerrilha, não irei. Da
mesma forma, se eu decidir recebê-la aqui, o governo colombiano
terá que respeitar. Não há data,
mas o encontro é muito provável.
Folha - O sr. vai conseguir resistir a ir ao FMI, símbolo do
neoliberalismo e da globalização que tanto condena?
Chávez - Não sei. Estamos conversando com o Fundo. Isto não é
prioritário nem urgente, mas
também não é descartável.
Para nós, o problema não é o
FMI em si, o problema está em
que nós aceitemos as políticas e as
regras neoliberais impostas a todo mundo pelo Fundo.
Qualquer um pode conversar
com Deus, com o diabo, com
quem quiser, desde que não abra
mão de seus princípios.
É também como a relação de
homens e mulheres: o homem
propõe, a mulher dispõe.
Folha - Como será seu encontro de 4 de setembro com o presidente Fernando Henrique Cardoso?
Chávez - O Brasil vai jogar um
papel fundamental, determinante, para a definição de um projeto
de desenvolvimento para a América Latina, para um novo modelo
econômico, para a integração
continental, para a criação de um
pólo de poder nesta parte do
mundo.
Existe o pólo da América do
Norte, o pólo Europeu, o pólo da
Ásia. O projeto de um pólo da
América Latina é perfeito. Um
projeto político de integração.
Folha - O sr. vai pedir ao presidente FHC que o Brasil participe
ativamente das negociações na
Colômbia?
Chávez - Estou seguro de que o
Brasil será fundamental para impedir o intervencionismo. Nós temos que nos opor à pretensão de
uma força militar multinacional,
estrangeira, para intervir na Colômbia. Isso pode ser um Vietnã
aqui nas nossas portas. Nós não
vamos permitir.
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