São Paulo, Quarta-feira, 25 de Agosto de 1999
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América Latina terá onda de protestos, diz Chávez


Presidente venezuelano diz que resultados sociais do neoliberalismo "selvagem" vão provocar manifestações, recusa acusação de golpista e volta a pedir atuação do Brasil para enfrentar crise colombiana


ELIANE CANTANHÊDE
enviada especial a Caracas

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, condena o ""neoliberalismo selvagem" adotado na América Latina e prevê que manifestações populares vão se multiplicar pelo continente, para forçar mudanças e novos modelos. ""Do México à Argentina, passando pelo Caribe, há processos assim, os povos buscam suas próprias maneiras de levantar suas bandeiras", disse Chávez em entrevista de quase duas horas à Folha, no seu gabinete do Palácio de Miraflores, em Caracas. Questionado sobre a ""Marcha dos 100 Mil", programada para amanhã em Brasília, ele tentou ser diplomático, mas depois disse que os presidentes latino-americanos ""devem ouvir, processar e governar de acordo com o clamor popular". E acrescentou: ""Nós (os presidentes) estamos indo de reunião de cúpula em reunião de cúpula, e os nossos povos, de abismo em abismo". Ele criticou a adoção ""de maneira dogmática de um modelo imposto que sataniza a proteção à indústria nacional, aos subsídios essenciais, o direito de intervenção do Estado na economia. O mercado ganha status de Deus". Apesar das críticas, o presidente conversa com o FMI e não descarta um acordo: ""Qualquer um pode conversar com Deus e com o diabo, desde que não abra mão de seus princípios", disse. Tenente-coronel da reserva, Chávez enalteceu a posição do Brasil na América Latina e pediu união para evitar ""o intervencionismo" na Colômbia.  

Folha - Depois de atentar contra o governo de Andrés Peres, o sr. aceita a classificação de golpista?
Hugo Chávez -
A rebelião militar de 4 fevereiro de 1992 foi produto da rebelião popular de 1989, o ""caracazo". Nada tem a ver com golpe de Estado, com golpismo, com o militarismo, os gorilas da Venezuela, como dizem por aí.
Fiquei preso dois anos. Quando saí, em 1994, um jornalista me perguntou: "E agora?" Eu respondi: ""Agora, nós vamos ao poder". E seguimos o caminho eleitoral. A face pacífica de uma revolução que começou violenta.

Folha - Quando os militares assumem o poder político, a gente sabe como tudo começa, mas não como acaba. O sr. não teme essa maldição?
Chávez -
Comete um grave erro quem classifica o processo venezuelano como um processo militar. Eu cheguei aqui por eleições. Não peguei num só fuzil.

Folha - O sr. é acusado de ter nomeado militares para cargos-chaves, por exemplo, do Executivo. Não existe um processo de militarização do governo?
Chávez -
Richard Nixon era militar, Eisenhower, George Bush... todos eles eram militares. Quando eu era tenente-coronel da ativa, tinha mestrado em Ciências Políticas e dava aulas. O próprio Andrés Peres nomeou chanceler um militar, general da ativa, aliás.

Folha - O sr. fez o contrário: nomeou chanceler um homem nitidamente de esquerda (Vicente Rangel). Por quê?
Chávez -
Porque não vejo muito claro hoje qual a divisão entre uma coisa e outra. Acho que o limite se rompeu. Rangel é um homem honesto, de muita capacidade, de muita habilidade, num setor muito difícil para nós.

Folha - E políticos? Qual a participação deles no seu governo? E qual sua opinião sobre eles?
Chávez -
Uma das máximas do pensador e filósofo alemão Karl von Clausewitz (1780-1831) diz que ""a guerra é a continuação da política por outros meios". Pode-se inverter: a política é a continuação da guerra. Sinto-me um guerreiro da política, um combatente político. Minha formação de guerreiro militar tem sido maravilhosamente útil no combate político. Mas é preciso distinguir o político verdadeiro do politiqueiro, do ""politicucho", do enganador, do ganhador de dólares.

Folha - Esse é o caso da maioria dos políticos venezuelanos?
Chávez -
Bem, a maior parte dos dirigentes são politiqueiros. Havia uma casta que era política e degenerou em politiqueira, emcorruptos que saquearam, roubaram e destroçaram o país.

Folha - O processo que o sr. descreve como de resgate é semelhante ao do Peru, onde o presidente Alberto Fujimori fechou Congresso e Judiciário?
Chávez -
Não posso avaliar o processo no Peru, porque não o conheço a fundo. Mas posso falar em geral sobre boa parte dos países da América Latina, onde, neste século, muitos dirigentes políticos se degradaram, perderam noção de projeto político, de país. O Brasil também viveu processos traumáticos.
Mas o processo na Venezuela foi mais profundo. Quase todos presidentes que passaram por aqui saíram com acusações de corrupção, e comprovadas. Mas ninguém fez nada. O que havia aqui era uma tumba moral. Estamos abrindo uma tumba, promovendo uma ressurreição.

Folha - Apesar da grande aprovação popular, o sr. enfrenta reações no Judiciário, no empresariado, na mídia. A queda de quase 10% na atividade econômica no último trimestre é uma crise de falta de confiança?
Chávez -
Sabe há quantos anos o Produto Interno Bruto vem caindo na Venezuela? Há 20 anos, desde 1979. O que ocorreu é que acabou o modelo econômico. Tudo isso é resultado da importação de um neoliberalismo selvagem.
Criou-se aqui um Estado vampiro, que chupava tudo do povo para servir à corrupção descarada de uns poucos. Quando ganhei a eleição, o barril de petróleo custava US$ 7. Hoje, está em US$ 18. Fizemos uma estratégia urgente de recuperação de preços.

Folha E o sistema financeiro, pilar do neoliberalismo?
Chávez -
A banca levou os juros a taxas selvagens, que chegaram a 120% no ano passado. Hoje, depois de tanto negociar, os juros baixaram 11% nesses seis meses.
Precisamos acabar com esse ciclo especulativo, com esse império monetarista.

Folha - Afora a questão do petróleo, que é muito específica da Venezuela, o sr. acha que esse mesmo modelo prejudica também praticamente todos os países da América Latina?
Chávez -
Uns mais, outros menos, mas certamente o neoliberal entrou com força em todo o continente e agravou os problemas. É uma crise global, que pesa muito em cada crise nacional. A queda da atividade econômica é comum em todos os nossos países.
Temos um modelo que atenta contra a empresa nacional, que não leva em conta as potencialidades de cada nação. Ao contrário, sataniza a proteção à indústria nacional, aos subsídios essenciais, o direito de intervenção do Estado na economia. O mercado ganha status de Deus. Isso é o grande responsável pela queda dos níveis econômicos e sociais de nosso continente.
Temos de achar um novo caminho para nossos países e nossos povos. Temos de parar de copiar automaticamente, de maneira dogmática, os modelos neoliberais selvagens que nos impõem.
Não se trata de seguir regras dos EUA, da Rússia, da Alemanha, da União Européia. Temos que saber o que é melhor para nós e implementar.

Folha - Na quarta-feira (hoje), está programada a ""Marcha dos Cem Mil" sobre Brasília, para protestar contra o modelo neoliberal, o ciclo monetarista ao qual o sr. se refere. O sr. apóia?
Chávez -
Não emito opinião, porque respeito o governo e o povo do Brasil. Mas desejo para o país o melhor.

Folha - O sr. acha que esse tipo de movimento vai se alastrar por outros países da América Latina?
Chávez -
Sim, com certeza. Já houve aqui, inclusive. Creio que em todos os nossos países, do México até a Argentina, passando pelo Caribe, há processos assim, os povos buscam suas próprias maneiras de levantar suas bandeiras.
Acho interessante esse tipo de processo de levantar bandeiras e creio que os líderes de todo o continente devem ouvir os clamores populares. Faço essa advertência, ou autocrítica: ""Nós andamos de reunião de cúpula em reunião de cúpula, e nossos povos, de abismo em abismo". Devemos ouvir, processar e governar em função do clamor dos nossos povos.

Folha - Além dos planos estruturais, o sr. tem um plano de emergência para combater o desemprego?
Chávez -
Eu sou um neo-estruturalista. Tenho as duas coisas, um plano estratégico e um plano emergencial, o Bolívar 2000. De um lado, atenção à saúde, educação, aos excluídos. De outro, estamos abrindo mão de impostos para que os bancos possam investir em alguns desses programas.
Além disso, temos projetos rodoviários, ferroviários e na área de gás, energia, minérios, petroquímica, além de uma revolução na área de petróleo. Um desses projetos de petróleo inclui o Brasil, para cooperação nas áreas de pesquisa, refino e distribuição.

Folha -Quantos são os desempregados hoje?
Chávez -
Calculamos em torno de 15%, o que dá uns 2,5 milhões de desempregados.

Folha - Sua disposição de dialogar com a guerrilha colombiana e a suspeita de que o sr. defende desapropriações não assustam os investidores internacionais?
Chávez -
Se eu fosse investidor internacional estaria louco para investir na Venezuela. A segurança jurídica vale ouro. A Justiça aqui estava podre, mas estamos extirpando esse tumor, essa podridão, e poderemos logo oferecer segurança jurídica aos nossos investidores de todo o mundo.
Quanto a desapropriações: nosso projeto de Constituição defende, ao contrário de ameaçar a propriedade privada. Só que ela deve cumprir função social. E quanto à guerrilha: até o presidente da Bolsa de Nova York foi à montanha conversar com os líderes da guerrilha, por que não posso ir?
Minha intenção é contribuir para a paz. Se for preciso falar com o Satanás para isso, falarei com ele sem nenhum problema.
Se o governo do meu amigo (Andrés) Pastrana não quer que eu vá à Colômbia conversar com a guerrilha, não irei. Da mesma forma, se eu decidir recebê-la aqui, o governo colombiano terá que respeitar. Não há data, mas o encontro é muito provável.

Folha - O sr. vai conseguir resistir a ir ao FMI, símbolo do neoliberalismo e da globalização que tanto condena?
Chávez -
Não sei. Estamos conversando com o Fundo. Isto não é prioritário nem urgente, mas também não é descartável.
Para nós, o problema não é o FMI em si, o problema está em que nós aceitemos as políticas e as regras neoliberais impostas a todo mundo pelo Fundo.
Qualquer um pode conversar com Deus, com o diabo, com quem quiser, desde que não abra mão de seus princípios.
É também como a relação de homens e mulheres: o homem propõe, a mulher dispõe.

Folha - Como será seu encontro de 4 de setembro com o presidente Fernando Henrique Cardoso?
Chávez -
O Brasil vai jogar um papel fundamental, determinante, para a definição de um projeto de desenvolvimento para a América Latina, para um novo modelo econômico, para a integração continental, para a criação de um pólo de poder nesta parte do mundo.
Existe o pólo da América do Norte, o pólo Europeu, o pólo da Ásia. O projeto de um pólo da América Latina é perfeito. Um projeto político de integração.

Folha - O sr. vai pedir ao presidente FHC que o Brasil participe ativamente das negociações na Colômbia?
Chávez -
Estou seguro de que o Brasil será fundamental para impedir o intervencionismo. Nós temos que nos opor à pretensão de uma força militar multinacional, estrangeira, para intervir na Colômbia. Isso pode ser um Vietnã aqui nas nossas portas. Nós não vamos permitir.


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