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FUTURO
Negociações para a transição esbarram nos poderes locais, ancorados na tradição tribal, diz analista
Governo multiétnico é desafio afegão
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
Nunca existiu um governo multiétnico no Afeganistão, segundo
o cientista político Olivier Roy,
um dos principais especialistas
franceses sobre o país. Foram
sempre os pashtus que dominaram, embora com a participação
de outras etnias.
As conversações a serem travadas em Bonn (Alemanha) a partir
de terça-feira para a criação desse
governo multiétnico enfrentarão,
pela primeira vez, o problema de
obter um resultado que seja aceitável por todos. "É difícil na prática, mas teoricamente possível",
afirma Roy.
Para ele, umas das principais
complicações em Bonn será fazer
os pashtus participarem do novo
governo sem terem a hegemonia.
Eles, que sempre mandaram, são
os perdedores da guerra.
Roy, 52, é diretor de pesquisa no
Centro Nacional de Pesquisas Sociais, em Paris, foi consultor do
Escritório de Coordenação do
Afeganistão da ONU e é autor de
"Afeganistão" e "A Nova Ásia
Central". Leia a seguir trechos de
sua entrevista à Folha.
Folha - Já existiu governo multiétnico na história afegã?
Olivier Roy - Nunca nesse plano,
multiétnico, mas sempre houve
uma parte importante de tadjiques no governo, controlado pelos pashtus. É isso que será negociado em Bonn pela primeira vez.
Folha - O sr. acredita na possibilidade desse tipo de governo?
Roy - Sim. A dificuldade é alcançar um resultado que seja aceitável por todos. É difícil na prática,
mas teoricamente possível.
Folha - Há uma crise de liderança,
tanto na Aliança do Norte quanto
entre os pashtus. Além disso, os
pashtus são os grandes perdedores. Que tipo de problema isso coloca nas conversações em Bonn?
Roy - No momento, foram os
pashtus que perderam, mas é preciso fazê-los voltar à equação governamental. A questão é como
fazê-los retornar sem que tenham
a hegemonia. Quanto à Aliança
do Norte, esse grupo possui forçosamente uma vantagem. A tomada de Cabul reforça o seu poder no inconsciente nacional. Mas
eles não vão dominar o país, pois
não seriam aceitos no sul.
Folha - Por que desde a criação do
Afeganistão as etnias não se dissolveram no conjunto nacional?
Olivier Roy - Porque foram as
próprias tribos que criaram a dinastia, que sempre respeitou o
sistema tribal. As tribos tomaram
Cabul diferentes vezes, a última
foi em 1930, e instalaram no país
uma monarquia que lhes era favorável. A monarquia jamais atacou este sistema e sempre teve
uma relação forte com as tribos.
Ela só começou a unificação de
fato a partir dos anos 50. Quando
membros das tribos se mudavam
para as cidades, eles se destribalizavam muito rapidamente. Foi
assim que uma parte dos pashtus
saiu do sistema tribal. Mas, no
campo, as tribos permaneceram
muito clássicas.
Folha - O que significa um governo constituído de forças tribais,
mais do que de partidos políticos?
Roy - Foi o que se passou. Nunca
houve partidos políticos. O rei negociava com a aristocracia tribal.
As grandes tribos nunca aderiram
a partidos, pois não interessava a
elas. Elas atuavam politicamente
com base no clientelismo.
Os partidos só chegaram no fim
dos anos 60, e seus membros foram recrutados entre a juventude,
entre a intelligentsia, sobretudo
os destribalizados de que eu falava. E os que eram mais politizados
queriam fazer a revolução. Essas
pessoas, porque haviam rompido
com um sistema tradicional e
conservador, aderiram a ideologias muito radicais, seja o comunismo ou o islamismo. Sociologicamente, a maioria dos chefes do
movimento islâmico era de pashtus destribalizados.
Folha - As etnias disputaram muito o poder na história?
Roy - Tradicionalmente, foram
sempre os pashtus que estiveram
o poder. Houve tensões, mas não
guerras étnicas, e as disputas
eram particularmente pelo controle de terras no norte do país. Os
pashtus talvez sejam a maioria,
não sabemos direito. Mas a questão não diz respeito à maioria populacional, mas ao poder tribal.
Eles tinham o poder militar. Tribos são organizações militares, e
os pashtus eram os mais fortes.
Folha - Como o equilíbrio de poder era mantido?
Roy - Pela dinastia, justamente.
A monarquia, desde o século 19,
encontrou uma forma de equilíbrio em que os pashtus eram privilegiados, mas não tinham o monopólio. A tribo pashtu sempre
recrutou outras etnias para o poder, em particular os tadjiques,
aos quais deram um bom lugar na
administração, por exemplo.
Mesmo o ex-rei Zahir Shah, que é
pashtu, sempre foi muito "persanizado". Ele fala melhor o dari
(língua dos tadjiques) que o pashtu. Foi em seu governo, em 1964,
que se promulgou a Constituição
e houve as primeiras eleições no
Afeganistão.
Folha - Pode-se dizer que os conflitos étnicos de fato começaram
com a invasão soviética, em 1979?
Roy - Não começaram, mas digamos que a invasão cristalizou as
oposições e sobretudo promoveu
um armamento geral da população. Isso fez com que a clivagem
étnica fosse expressa pela forma
militar, com a guerra. O que se
passou foi que, com a guerra contra os soviéticos, os grupos não-pashtus do norte desenvolveram
poderes político-militares.
A partir desse momento, eles se
recusaram a voltar ao poder pashtu tradicional. A guerra contra os
soviéticos mudou a estrutura do
país. A partir de 1985, não de imediato, os soviéticos quiseram aplicar no Afeganistão as teorias sobre as nacionalidades e as etnias
que eles haviam desenvolvido na
União Soviética. Com isso, acabaram reforçando a clivagem étnica,
ao querer criar territórios para os
diferentes grupos étnicos.
Folha - Os chefes das diferentes
etnias aspiram de fato a um Estado
nacional ou eles se preocupam apenas com seus poderes locais?
Roy - Eles pensam no poder nacional, mas o poder local foi reforçado pela guerra e tem um papel
muito importante hoje. Na lógica
tribal tradicional, o que interessa é
assegurar o poder local, evitar a
ingerência do Estado, colocar
seus homens no poder central etc.
Essa é a técnica tradicional da gestão das tribos. De modo que estão
numa encruzilhada: o poder local
é essencial, mas oficialmente são
todos partidários de uma ordem
nacional.
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