São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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FUTURO

Negociações para a transição esbarram nos poderes locais, ancorados na tradição tribal, diz analista

Governo multiétnico é desafio afegão

ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Nunca existiu um governo multiétnico no Afeganistão, segundo o cientista político Olivier Roy, um dos principais especialistas franceses sobre o país. Foram sempre os pashtus que dominaram, embora com a participação de outras etnias.
As conversações a serem travadas em Bonn (Alemanha) a partir de terça-feira para a criação desse governo multiétnico enfrentarão, pela primeira vez, o problema de obter um resultado que seja aceitável por todos. "É difícil na prática, mas teoricamente possível", afirma Roy.
Para ele, umas das principais complicações em Bonn será fazer os pashtus participarem do novo governo sem terem a hegemonia. Eles, que sempre mandaram, são os perdedores da guerra.
Roy, 52, é diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisas Sociais, em Paris, foi consultor do Escritório de Coordenação do Afeganistão da ONU e é autor de "Afeganistão" e "A Nova Ásia Central". Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - Já existiu governo multiétnico na história afegã?
Olivier Roy -
Nunca nesse plano, multiétnico, mas sempre houve uma parte importante de tadjiques no governo, controlado pelos pashtus. É isso que será negociado em Bonn pela primeira vez.

Folha - O sr. acredita na possibilidade desse tipo de governo?
Roy -
Sim. A dificuldade é alcançar um resultado que seja aceitável por todos. É difícil na prática, mas teoricamente possível.

Folha - Há uma crise de liderança, tanto na Aliança do Norte quanto entre os pashtus. Além disso, os pashtus são os grandes perdedores. Que tipo de problema isso coloca nas conversações em Bonn?
Roy -
No momento, foram os pashtus que perderam, mas é preciso fazê-los voltar à equação governamental. A questão é como fazê-los retornar sem que tenham a hegemonia. Quanto à Aliança do Norte, esse grupo possui forçosamente uma vantagem. A tomada de Cabul reforça o seu poder no inconsciente nacional. Mas eles não vão dominar o país, pois não seriam aceitos no sul.

Folha - Por que desde a criação do Afeganistão as etnias não se dissolveram no conjunto nacional?
Olivier Roy -
Porque foram as próprias tribos que criaram a dinastia, que sempre respeitou o sistema tribal. As tribos tomaram Cabul diferentes vezes, a última foi em 1930, e instalaram no país uma monarquia que lhes era favorável. A monarquia jamais atacou este sistema e sempre teve uma relação forte com as tribos.
Ela só começou a unificação de fato a partir dos anos 50. Quando membros das tribos se mudavam para as cidades, eles se destribalizavam muito rapidamente. Foi assim que uma parte dos pashtus saiu do sistema tribal. Mas, no campo, as tribos permaneceram muito clássicas.

Folha - O que significa um governo constituído de forças tribais, mais do que de partidos políticos?
Roy -
Foi o que se passou. Nunca houve partidos políticos. O rei negociava com a aristocracia tribal. As grandes tribos nunca aderiram a partidos, pois não interessava a elas. Elas atuavam politicamente com base no clientelismo.
Os partidos só chegaram no fim dos anos 60, e seus membros foram recrutados entre a juventude, entre a intelligentsia, sobretudo os destribalizados de que eu falava. E os que eram mais politizados queriam fazer a revolução. Essas pessoas, porque haviam rompido com um sistema tradicional e conservador, aderiram a ideologias muito radicais, seja o comunismo ou o islamismo. Sociologicamente, a maioria dos chefes do movimento islâmico era de pashtus destribalizados.

Folha - As etnias disputaram muito o poder na história?
Roy -
Tradicionalmente, foram sempre os pashtus que estiveram o poder. Houve tensões, mas não guerras étnicas, e as disputas eram particularmente pelo controle de terras no norte do país. Os pashtus talvez sejam a maioria, não sabemos direito. Mas a questão não diz respeito à maioria populacional, mas ao poder tribal. Eles tinham o poder militar. Tribos são organizações militares, e os pashtus eram os mais fortes.

Folha - Como o equilíbrio de poder era mantido?
Roy -
Pela dinastia, justamente. A monarquia, desde o século 19, encontrou uma forma de equilíbrio em que os pashtus eram privilegiados, mas não tinham o monopólio. A tribo pashtu sempre recrutou outras etnias para o poder, em particular os tadjiques, aos quais deram um bom lugar na administração, por exemplo. Mesmo o ex-rei Zahir Shah, que é pashtu, sempre foi muito "persanizado". Ele fala melhor o dari (língua dos tadjiques) que o pashtu. Foi em seu governo, em 1964, que se promulgou a Constituição e houve as primeiras eleições no Afeganistão.

Folha - Pode-se dizer que os conflitos étnicos de fato começaram com a invasão soviética, em 1979?
Roy -
Não começaram, mas digamos que a invasão cristalizou as oposições e sobretudo promoveu um armamento geral da população. Isso fez com que a clivagem étnica fosse expressa pela forma militar, com a guerra. O que se passou foi que, com a guerra contra os soviéticos, os grupos não-pashtus do norte desenvolveram poderes político-militares.
A partir desse momento, eles se recusaram a voltar ao poder pashtu tradicional. A guerra contra os soviéticos mudou a estrutura do país. A partir de 1985, não de imediato, os soviéticos quiseram aplicar no Afeganistão as teorias sobre as nacionalidades e as etnias que eles haviam desenvolvido na União Soviética. Com isso, acabaram reforçando a clivagem étnica, ao querer criar territórios para os diferentes grupos étnicos.

Folha - Os chefes das diferentes etnias aspiram de fato a um Estado nacional ou eles se preocupam apenas com seus poderes locais?
Roy -
Eles pensam no poder nacional, mas o poder local foi reforçado pela guerra e tem um papel muito importante hoje. Na lógica tribal tradicional, o que interessa é assegurar o poder local, evitar a ingerência do Estado, colocar seus homens no poder central etc. Essa é a técnica tradicional da gestão das tribos. De modo que estão numa encruzilhada: o poder local é essencial, mas oficialmente são todos partidários de uma ordem nacional.


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