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TRADIÇÃO
Mês sagrado do islã evidencia identidade muçulmana, alvo de crescente curiosidade no Brasil
Ramadã em São Paulo
PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO
A comunidade islâmica do Brasil vem despertando curiosidade
e, em incidentes isolados, hostilidade desde os atentados de 11 de
setembro. Neste período de Ramadã, em que os muçulmanos se
abstêm de comer e beber da alvorada ao pôr-do-sol, sua identidade religiosa se faz mais evidente.
De acordo com seguidores do
islã ouvidos pela Folha na última
semana, a maioria dos brasileiros
quase não tinha noção sobre a religião poucos meses atrás, mas os
recentes acontecimentos estão
mudando esse panorama.
"Com os atentados e a novela
["O Clone'", na rua, na loja, quando alguém diz: "Desculpe, posso
fazer uma pergunta?", já sei que é
sobre minha religião", diz Lidia
Muhammad Sleiman, 30. "Antes,
sempre perguntavam sobre o lenço [Lidia usa "hijab", o véu tradicional entre as muçulmanas".
Agora querem saber sobre poligamia, dote e outras questões."
Lidia conta que, na última terça-feira, a chamaram de "irmã de Bin
Laden": "Todo mundo começou
a olhar, mas sei que foi só uma
brincadeira. O Brasil é um país
sem preconceito. Nós não somos
a favor do terrorismo, somos a favor do islamismo."
Seu marido, Muhammad Hussein Wehbe, 30, também não escapou à associação: "Hoje um homem me chamou de Bin Laden.
Eu estava andando na calçada e,
pelo jeito, ele viu o meu tamanho
[Muhammad tem cerca de dois
metros". Não insistiu no assunto.
Eu simplesmente o ignorei", disse
ele.
Questionado sobre se sua barba,
comum entre muçulmanos, teria
contribuído para o incidente, respondeu: "Com certeza".
Jejum e oração
Muhammad acorda sempre por
volta das 4h para a primeira de
suas cinco orações diárias. No Ramadã, porém, além de rezar, ele
faz uma boa refeição de madrugada a fim de se preparar para o jejum. Na última quarta-feira, Lidia
lhe preparou pizza, um copo de
chá e frutas. "Você pode comer
qualquer coisa antes de iniciar o
jejum, menos carne de porco e bebida alcoólica", explica.
Às 7h, ele vai para a loja de móveis que possui na Mooca, em São
Paulo. "Fico o dia inteiro lá. Rezo
a "zuhr" e a "asr" [duas orações" no
escritório, aproximadamente às
13h e às 16h30. Apesar do jejum,
não me sinto mais cansado."
A outra loja do casal é aberta
por Lidia, que, ao final da manhã,
vai para a escola Sapiens. À exceção da sexta-feira, dia sagrado
muçulmano, em que os alunos rezam na mesquita próxima à escola, Lidia leciona árabe e religião.
Na Sapiens, os não-muçulmanos
não são obrigados a estudar árabe, ensinado do maternal à terceira série. "As aulas são normais, todos os dias, mas não estou exigindo tanto por ser Ramadã", afirma.
As aulas de educação física são
facultativas para os muçulmanos
durante este mês islâmico, mas na
última quinta-feira todas as crianças jogavam basquete.
Alcorão na escola
Hussein, 6, filho de Lidia, estuda
na primeira série da Sapiens e já
recita alguns versículos do Alcorão. "A gente aprende a ficar mais
inteligente na aula de árabe", diz.
Hussein não jejua por causa da
pouca idade, mas reclama com a
mãe porque quer ficar sem comer. "A gente dá comida aos pobres enquanto fica de jejum", afirma quando questionado sobre a
importância do Ramadã.
O menino foi duas vezes ao Líbano, à região de Beqaa, de onde
vieram seus pais há oito anos. Lá,
brinca mais na rua do que no Brasil "porque não tem ladrão".
Entre as matérias que lhe despertam interesse particular, estão
o árabe e o Alcorão. Na quinta-feira, o xeque Iasser explicou a ele
e a seus colegas o que devem fazer
para ir à mesquita, a começar pela
purificação, geralmente com
água, que precede a oração. Naquele dia, dez dos 15 alunos em
sala estavam jejuando.
Na quarta-feira, Lidia dedicou
uma aula ao jejum. Na quinta, fez
chamada oral: "Injeção pode durante o Ramadã?". E a reposta:
"Depende, se for vitamina, não".
"E água?" "Não." É comum promover concursos em escolas,
mesquitas e clubes no Ramadã.
As perguntas dizem respeito essencialmente à vida do profeta
Muhammad e ao Alcorão.
"O jejum só é obrigatório a partir da puberdade, mas, quando a
criança chega aos sete anos, começa a jejuar parcialmente para
treinar", diz Fátima Dargham, 32,
motorista de microônibus de
uma escola islâmica.
Grávidas, mulheres em pós-parto (durante 40 dias) ou menstruadas, quem amamenta e pessoas que estão em viagem ficam
temporariamente isentas do jejum. "Apenas os doentes e os idosos não precisam repor o jejum.
Em compensação, devem alimentar um pobre por cada dia perdido", diz Fátima.
Na última quarta, Muhammad
e Lidia rezaram na mesquita de
São Bernardo, onde moram, por
volta das 19h30. Em seguida, quebraram o jejum em casa, a cinco
minutos do templo islâmico, com
alguns convidados, incluindo Fátima. Entre as comidas, fatuche
(salada libanesa), lasanha, sorvete, doces árabes e frutas.
"Quebrei o jejum em casa apenas no primeiro dia. Todos os outros passei com amigos. Nós sempre os convidamos", diz Fátima.
Até por volta das 21h, quando
voltam à mesquita para a última
oração do dia, a conversa neste
ano gira em torno do Afeganistão
e também da novela.
"O Clone"
"Até hoje não foi comprovada a
culpa de Bin Laden [acusado de
orquestrar os atentados contra os
EUA". Acho que o objetivo é acabar com o Afeganistão e soltar
bombas com a validade vencida",
acredita Muhammad. "Quando
os EUA apoiavam Bin Laden, não
havia problema algum, pois não
eram norte-americanos que morriam."
Tanto Fátima quanto Lidia assistem à novela "O Clone". "Mostrar o lençol para provar a virgindade não é do islã. É cultura do
país, uma característica pré-islâmica. Ninguém deve intrometer-se na vida do casal. Meu casamento, por exemplo, ninguém queria
no começo. Tanto a mulher quanto o homem têm de casar virgem", afirma Fátima.
"A poligamia na novela parece
rotineira", diz Lidia. "Todo mundo pergunta sobre isso. Para casar
mais de uma vez é preciso tratar
todas as mulheres igualmente. Na
Arábia Saudita, há mais poligamia, mas no Líbano é raro."
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