São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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TRADIÇÃO

Mês sagrado do islã evidencia identidade muçulmana, alvo de crescente curiosidade no Brasil

Ramadã em São Paulo

PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO

A comunidade islâmica do Brasil vem despertando curiosidade e, em incidentes isolados, hostilidade desde os atentados de 11 de setembro. Neste período de Ramadã, em que os muçulmanos se abstêm de comer e beber da alvorada ao pôr-do-sol, sua identidade religiosa se faz mais evidente.
De acordo com seguidores do islã ouvidos pela Folha na última semana, a maioria dos brasileiros quase não tinha noção sobre a religião poucos meses atrás, mas os recentes acontecimentos estão mudando esse panorama.
"Com os atentados e a novela ["O Clone'", na rua, na loja, quando alguém diz: "Desculpe, posso fazer uma pergunta?", já sei que é sobre minha religião", diz Lidia Muhammad Sleiman, 30. "Antes, sempre perguntavam sobre o lenço [Lidia usa "hijab", o véu tradicional entre as muçulmanas". Agora querem saber sobre poligamia, dote e outras questões."
Lidia conta que, na última terça-feira, a chamaram de "irmã de Bin Laden": "Todo mundo começou a olhar, mas sei que foi só uma brincadeira. O Brasil é um país sem preconceito. Nós não somos a favor do terrorismo, somos a favor do islamismo."
Seu marido, Muhammad Hussein Wehbe, 30, também não escapou à associação: "Hoje um homem me chamou de Bin Laden. Eu estava andando na calçada e, pelo jeito, ele viu o meu tamanho [Muhammad tem cerca de dois metros". Não insistiu no assunto. Eu simplesmente o ignorei", disse ele.
Questionado sobre se sua barba, comum entre muçulmanos, teria contribuído para o incidente, respondeu: "Com certeza".

Jejum e oração
Muhammad acorda sempre por volta das 4h para a primeira de suas cinco orações diárias. No Ramadã, porém, além de rezar, ele faz uma boa refeição de madrugada a fim de se preparar para o jejum. Na última quarta-feira, Lidia lhe preparou pizza, um copo de chá e frutas. "Você pode comer qualquer coisa antes de iniciar o jejum, menos carne de porco e bebida alcoólica", explica.
Às 7h, ele vai para a loja de móveis que possui na Mooca, em São Paulo. "Fico o dia inteiro lá. Rezo a "zuhr" e a "asr" [duas orações" no escritório, aproximadamente às 13h e às 16h30. Apesar do jejum, não me sinto mais cansado."
A outra loja do casal é aberta por Lidia, que, ao final da manhã, vai para a escola Sapiens. À exceção da sexta-feira, dia sagrado muçulmano, em que os alunos rezam na mesquita próxima à escola, Lidia leciona árabe e religião. Na Sapiens, os não-muçulmanos não são obrigados a estudar árabe, ensinado do maternal à terceira série. "As aulas são normais, todos os dias, mas não estou exigindo tanto por ser Ramadã", afirma.
As aulas de educação física são facultativas para os muçulmanos durante este mês islâmico, mas na última quinta-feira todas as crianças jogavam basquete.

Alcorão na escola
Hussein, 6, filho de Lidia, estuda na primeira série da Sapiens e já recita alguns versículos do Alcorão. "A gente aprende a ficar mais inteligente na aula de árabe", diz.
Hussein não jejua por causa da pouca idade, mas reclama com a mãe porque quer ficar sem comer. "A gente dá comida aos pobres enquanto fica de jejum", afirma quando questionado sobre a importância do Ramadã.
O menino foi duas vezes ao Líbano, à região de Beqaa, de onde vieram seus pais há oito anos. Lá, brinca mais na rua do que no Brasil "porque não tem ladrão".
Entre as matérias que lhe despertam interesse particular, estão o árabe e o Alcorão. Na quinta-feira, o xeque Iasser explicou a ele e a seus colegas o que devem fazer para ir à mesquita, a começar pela purificação, geralmente com água, que precede a oração. Naquele dia, dez dos 15 alunos em sala estavam jejuando.
Na quarta-feira, Lidia dedicou uma aula ao jejum. Na quinta, fez chamada oral: "Injeção pode durante o Ramadã?". E a reposta: "Depende, se for vitamina, não". "E água?" "Não." É comum promover concursos em escolas, mesquitas e clubes no Ramadã. As perguntas dizem respeito essencialmente à vida do profeta Muhammad e ao Alcorão.
"O jejum só é obrigatório a partir da puberdade, mas, quando a criança chega aos sete anos, começa a jejuar parcialmente para treinar", diz Fátima Dargham, 32, motorista de microônibus de uma escola islâmica.
Grávidas, mulheres em pós-parto (durante 40 dias) ou menstruadas, quem amamenta e pessoas que estão em viagem ficam temporariamente isentas do jejum. "Apenas os doentes e os idosos não precisam repor o jejum. Em compensação, devem alimentar um pobre por cada dia perdido", diz Fátima.
Na última quarta, Muhammad e Lidia rezaram na mesquita de São Bernardo, onde moram, por volta das 19h30. Em seguida, quebraram o jejum em casa, a cinco minutos do templo islâmico, com alguns convidados, incluindo Fátima. Entre as comidas, fatuche (salada libanesa), lasanha, sorvete, doces árabes e frutas.
"Quebrei o jejum em casa apenas no primeiro dia. Todos os outros passei com amigos. Nós sempre os convidamos", diz Fátima.
Até por volta das 21h, quando voltam à mesquita para a última oração do dia, a conversa neste ano gira em torno do Afeganistão e também da novela.

"O Clone"
"Até hoje não foi comprovada a culpa de Bin Laden [acusado de orquestrar os atentados contra os EUA". Acho que o objetivo é acabar com o Afeganistão e soltar bombas com a validade vencida", acredita Muhammad. "Quando os EUA apoiavam Bin Laden, não havia problema algum, pois não eram norte-americanos que morriam."
Tanto Fátima quanto Lidia assistem à novela "O Clone". "Mostrar o lençol para provar a virgindade não é do islã. É cultura do país, uma característica pré-islâmica. Ninguém deve intrometer-se na vida do casal. Meu casamento, por exemplo, ninguém queria no começo. Tanto a mulher quanto o homem têm de casar virgem", afirma Fátima.
"A poligamia na novela parece rotineira", diz Lidia. "Todo mundo pergunta sobre isso. Para casar mais de uma vez é preciso tratar todas as mulheres igualmente. Na Arábia Saudita, há mais poligamia, mas no Líbano é raro."


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