São Paulo, Sábado, 25 de Dezembro de 1999


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O HISTORIADOR

"Nunca houve trégua ampla como aquela"


da Redação

Leia a seguir trechos da entrevista que o historiador Malcolm Brown, autor de "Christmas Truce" (Trégua de Natal), concedeu à Folha, por telefone. (MS)

Folha - Por muitos anos as pessoas não acreditavam que a trégua havia ocorrido. Quando o tema deixou de ser lenda?
Malcolm Brown -
A trégua definitivamente aconteceu, foi registrada em diários, descrita em cartas de soldados, que foram inclusive publicadas em jornais da época. A trégua aconteceu logo no início de uma guerra muito amarga, e é compreensível que pensassem que um evento como esse nunca havia acontecido.

Folha - Eram apenas britânicos e alemães na trégua, ou franceses e belgas também aderiram?
Brown -
Houve muito mais trégua entre britânicos e alemães. Os britânicos estavam em um país estrangeiro, enquanto os belgas e franceses lutavam contra a ocupação alemã de seu território. Para os britânicos, longe de casa, não era tão grave pensar em fazer uma pausa na guerra para ter um bom momento com o inimigo.
Os alemães também não estavam em casa e queriam celebrar, cantar e lembrar o Natal. Para os belgas e franceses, era uma questão de defender a pátria invadida.

Folha - É curioso o fato de eles terem jogado futebol durante a trégua. Havia bolas no front?
Brown -
O futebol era muito popular entre os britânicos e entre os alemães. Eles jogaram às vezes com bola, às vezes chutando recipientes de comida vazios. Tiraram também muitas fotografias durante o ocorrido. Em um episódio, um soldado britânico chamou um alemão para tirar uma foto ao seu lado. O alemão disse que queria fazer uma nova trégua um ano mais tarde, para poder ver como ficaria a foto.

Folha - Eles fizeram ceias juntos?


"Um soldado britânico melhorou a sua trincheira pegando emprestado as ferramentas do inimigo"

Brown - Sim. Os dois países mandaram enormes remessas de comida, que incluía pudins de Natal (o Reino Unido). A Alemanha também enviou árvores de Natal ao front. Assim, eles tinham ótimas refeições. Outra coisa: o clima ficou muito bom de repente. Havia geada, já não chovia tanto, o clima ficou natalino, com cara de cartão de Natal. Isso os ajudou a pensar: "por que devo estar matando os outros?".

Folha - Como acabou a trégua?
Brown -
Isso não acabou de repente. Os oficiais reconheciam as péssimas condições das trincheiras em que estavam os seus soldados. Era claro que, se eles permitissem essa paz continuar, os homens poderiam melhorar as trincheiras e suas condições de vida.
Eu mesmo falei com um soldado britânico que disse ter melhorado a sua trincheira pegando emprestado as ferramentas do inimigo. Eles viram que os alemães faziam um trabalho melhor, então foram lá e pediram suas ferramentas. Os alemães disseram "está aqui, pode pegar".
Em alguns casos a trégua durou semanas, porque as pessoas estavam relutantes em voltar à guerra. Um jovem oficial ferido que voltou do front em março de 1915 disse que ainda havia trégua na localidade de onde viera.

Folha - Há na história registro de outras tréguas como essa?
Brown -
Em 1915 houve também uma trégua de Natal, mas foi curta. Em 1969, durante a guerra entre a Nigéria e rebeldes de Biafra, quando os brasileiros (o time do Santos, de Pelé) foram jogar contra os nigerianos, os dois lados pararam de guerrear para escutar o jogo de futebol no rádio. Mas nenhum evento foi tão amplo como aquele do Natal de 1914.
A guerra ficou muito mais amarga nas últimas décadas. Não acho que houve muita trégua de Natal na Bósnia, ou que haveria em Kosovo. Uma trégua como aquela acontece quando linhas inimigas estão próximas e vivendo sob as mesmas condições. Surge amizade, um sentimento de companheirismo que não temos na guerra que é lutada à distância.
Os atiradores que disparavam em Sarajevo eram pontos pretos no horizonte. Mas quando se está tão perto a ponto de ouvir o outro conversar ou cantar, é mais fácil ver o inimigo como ser humano.



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