UOL


São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VIZINHO EM CRISE

Texto constitucional impreciso gera interpretações enviesadas a respeito da consulta sobre o mandato de Chávez

Referendo amplia confronto venezuelano

ROGERIO WASSERMANN
DA REDAÇÃO

A batalha em torno do referendo sobre o mandato do presidente Hugo Chávez, demandado pela oposição e cujos preparativos foram suspensos na quarta-feira, por ordem da Suprema Corte, é o mais claro exemplo das disputas dogmáticas, carentes de qualquer lógica, em que qualquer questão é transformada hoje na Venezuela.
Enquanto a oposição exige a realização do referendo, para o qual recolheu 1,5 milhão de assinaturas, com base em seus "irrefutáveis" argumentos jurídicos, o governo, também com seus "irrefutáveis" argumentos, o classifica de inconstitucional.
Quem tem razão? Tudo é uma questão de interpretação do texto da Constituição, redigida em 1999 por uma Assembléia Constituinte amplamente controlada por Chávez. Então bastante popular, o presidente estimulou o recurso do referendo para, segundo ele, "governar com o povo". Mas o texto é em muitos pontos impreciso, o que pode dar margem a diferentes interpretações.
A Carta estabelece, em seus artigos 71, 72, 73 e 74, quatro tipos diferentes de referendos: consultivo, sobre temas de interesse nacional em geral; revogatório, para revogar mandatos eletivos; aprobatório, para aprovar leis; e ab-rogatório, para revogar leis.

Abaixo-assinado
Sob o argumento de que qualquer tema de interesse nacional pode ser tópico de um referendo consultivo, a oposição iniciou no ano passado uma coleta de assinaturas para uma consulta a respeito da manutenção do presidente no poder.
De acordo com a Constituição, o referendo consultivo pode ser convocado por iniciativa do presidente, pela maioria da Assembléia Nacional -onde Chávez hoje tem uma pequena maioria- ou por solicitação de ao menos 10% do eleitorado (1,2 milhão de pessoas). Apesar do nome, a Carta não diz se o governo é obrigado a acatar seu resultado.
A pergunta proposta pela oposição para o referendo consultivo foi: "Você está de acordo em solicitar ao presidente Hugo Chávez que renuncie voluntariamente ao seu cargo de maneira imediata?"
Os chavistas alegam que a pergunta tem caráter revogatório e, por isso, dizem que ele seria ilegal antes da metade do mandato presidencial, em agosto. "Um referendo consultivo é somente um levantamento da opinião popular, sem caráter obrigatório", afirma o advogado constitucionalista Carlos Escarrá Malavé, ex-constituinte e juiz da Suprema Corte entre 1999 e 2000. "O que queriam era contrabandear uma questão revogatória em um referendo consultivo", argumenta.
Um referendo revogatório, no caso, teria de ser convocado por solicitação de ao menos 20% dos eleitores (2,4 milhões de pessoas). Além disso, sua convocação só pode ocorrer a partir da metade do mandato do funcionário -no caso de Chávez, em agosto.
A maioria da oposição afirma que uma derrota de Chávez num referendo consultivo o enfraqueceria tanto que inviabilizaria seu governo, mas outros oposicionistas dizem que a derrota deveria obrigá-lo a renunciar.
"O referendo consultivo pode ter como tema qualquer questão de interesse nacional e deve ter seu resultado obedecido pelo governo, porque, senão, seria como institucionalizar uma pesquisa de opinião", diz o constitucionalista Hermann Escarrá Malavé.
Ex-chavista e ex-constituinte, Hermann é assessor da Coordenação Democrática (CD), associação de partidos e organizações de oposição. Ele é também irmão de Carlos Escarrá-uma indicação de que as paixões políticas na Venezuela são mais fortes até mesmo que os laços familiares.

Cinco Poderes
A proposta da oposição de realizar um referendo consultivo, após a entrega das assinaturas suficientes, foi acatada em novembro pelo CNE (Conselho Nacional Eleitoral) -um dos cinco Poderes previstos pela nova Constituição venezuelana, que agregou o Poder Eleitoral e o Poder Cidadão aos três Poderes tradicionais.
O CNE considerou que a pergunta formulada pela oposição não configurava uma consulta revogatória, mas consultiva, e que, assim, ela poderia ocorrer.
O CNE marcou o referendo para o dia 2 de fevereiro e iniciou os preparativos para a votação, mas, no mesmo dia, a Suprema Corte concedeu liminar contra a decisão do conselho.
A decisão da Justiça não contestava a legalidade do referendo em si, mas a presença, entre os conselheiros do CNE, de um ex-suplente que havia renunciado anteriormente ao mandato para se juntar à Coordenação Democrática -parte interessada no processo.
O mesmo argumento foi usado pela Suprema Corte na semana passada para ordenar a suspensão dos preparativos para o referendo. O CNE havia continuado os preparativos para a votação, apesar da liminar do Supremo, argumentando que ela feria a independência entre os Poderes.

Xeque-mate
Com a provável impossibilidade de realizar o referendo no dia 2, como já admitem os adversários de Chávez, a oposição planeja um lance mais audaz, que poderia significar o fim precoce do mandato do presidente: a convocação de uma nova Assembléia Constituinte, por um abaixo-assinado popular. A Constituição diz que a convocação de uma Assembléia Constituinte pode ser feita pelo presidente, pela Assembléia Nacional, pelas Câmaras Municipais ou por 15% dos eleitores.
O deputado Andrés Velásquez, do partido de esquerda Causa R e porta-voz da CD, disse na sexta-feira que a convocação de uma Constituinte por iniciativa popular seria "um xeque-mate constitucional e democrático" em Chávez. A Constituinte teria o poder de revogar o mandato do atual presidente e de estabelecer um governo de transição até a realização de novas eleições gerais.
Mas, na Venezuela polarizada de Chávez, parece mais plausível que a solução para o impasse atual venha de algum acordo entre as partes mediado por terceiros, não de uma ação unilateral.


Texto Anterior: Palestinos não acreditam em mudanças
Próximo Texto: Irmãos defendem posições opostas
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.