São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2004

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"REALPOLITIK"

Para premiê britânico, ditador merece crédito por ter desistido de armas de destruição em massa e condenado o terror

Blair visita Gaddafi e põe fim a isolamento

Stefan Rousseau/Associated Press
O premiê Tony Blair (à esquerda) aperta a mão do ditador Muammar Gaddafi em visita à Líbia


DO "INDEPENDENT", EM TRÍPOLI

O premiê britânico, Tony Blair, ofereceu ontem ao coronel Muammar Gaddafi o "cumprimento da amizade" ao se reunir com o ditador líbio numa tenda no deserto. A visita pôs fim a 20 anos de isolamento internacional da Líbia, considerado um Estado pária desde o início dos anos 1990 devido a seu envolvimento em atos terroristas, e recruta Gaddafi como um parceiro do Reino Unido -e dos EUA- justamente na guerra contra o terrorismo.
Antes de Blair, os premiês espanhol, José María Aznar, e italiano, Silvio Berlusconi, assim como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já haviam visitado Gaddafi nos últimos meses. Mas o encontro de ontem tem maior significado nas relações internacionais.
Blair classificou Gaddafi de um exemplo de reabilitação internacional e elogiou sua decisão de adotar "uma causa comum" ao Ocidente na luta contra a Al Qaeda e o terrorismo. Diplomatas britânicos disseram já estar recebendo da Líbia informações sobre grupos do norte da África que seriam ligados à rede terrorista de Osama bin Laden.
Outra razão para a reaproximação do Reino Unido -e potencialmente de outros países europeus e dos EUA- com a Líbia são as reservas petrolíferas (cerca de 3% do total mundial) e de gás natural (cerca de 1%) do país.
Ontem mesmo, o grupo anglo-holandês Shell assinou um acordo que prevê investimentos iniciais de US$ 200 milhões na exploração de petróleo e gás na Líbia. Segundo fontes no governo Blair, o contrato pode chegar a US$ 1 bilhão.
Blair busca recompensar o ditador líbio por ele ter desistido, em dezembro passado, de seus programas de armas de destruição em massa e ter aberto o país a inspeções internacionais.
Desde o início dos anos 80, a Líbia, sob a liderança de Gaddafi, é acusada de patrocinar e promover o terrorismo. O maior atentado no qual o país esteve envolvido foi a explosão de um avião da Pan Am sobre Lockerbie, na Escócia, em 1988, matando 270 pessoas.
Blair defendeu seu encontro com o ditador com o argumento de que o Ocidente precisa reagir de forma positiva a governos que repudiam o terrorismo e as armas de destruição em massa.
"Parece estranho ter vindo aqui e é claro que estou consciente do sentimento das pessoas que sofreram devido a ações terroristas do passado", disse o premiê, em Trípoli, após a reunião.
"Se um país está disposto a dizer "nós vamos superar o passado, queremos abrir mão de nossas armas de destruição em massa e cortar nossas ligações com grupos terroristas", é preciso estar aberto para estender a mão a esse país."
Autoridades britânicas esperam que a eventual colaboração de Gaddafi com o Ocidente traga importantes avanços na guerra contra o terror e no combate aos grupos extremistas islâmicos.
Também crêem que Gaddafi possa entregar informações valiosas sobre as capacidades militares de países como o Irã e a Coréia do Norte, que, assim como a Líbia, tentaram obter capacidade nuclear nos últimos anos.
O chanceler líbio, Abdul Rahmem Shalgam, reiterou a oposição do governo de Gaddafi à Al Qaeda e prometeu ajudar a combater a rede: "Temos uma aliança contra esse movimento porque ele é perigoso para a nossa cultura e para a nossa segurança".

Familiares criticam
Familiares das vítimas do atentado de Lockerbie dividiram-se ontem nas reações à nova parceria entre Blair e Gaddafi.
"É claro que tenho sentimentos mistos, pois Gaddafi foi responsável pelo assassinato de meu filho", disse o norte-americano Jack Schultz, ex-presidente do grupo Vítimas do Vôo Pan Am 103.
"Não posso perdoá-lo, mas estou pronto a aceitar que o mundo provavelmente ficará melhor e mais seguro no momento em que os Estados Unidos e o Reino Unido chegam a um acordo com a Líbia", afirmou.
Para Daniel Cohen, também pai de uma vítima americana, a iniciativa de Blair foi "obscena".
"Blair participou de uma cerimônia em Madri para as vítimas do segundo maior atentado terrorista na Europa e, logo em seguida, entrou num avião e foi para Trípoli cumprimentar o arquiteto do maior ataque terrorista na Europa", disse. "Isso é obsceno."
No atentado de Lockerbie, em 1998, morreram 270 pessoas. Em Madri, no último dia 11, 190.
Em 2003, a Líbia finalmente admitiu a responsabilidade pela explosão em 1988 do avião da Pan Am que fazia o trajeto entre Londres e Nova York e concordou em pagar bilhões de dólares em indenizações. Em 2001, um agente secreto líbio foi condenado, na Holanda, à prisão perpétua pela autoria do atentado de Lockerbie.

Com agências internacionais


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