São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2004

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ANÁLISE

A ética do aperto de mão com um tirano

DO "INDEPENDENT"

A coisa mais estranha a respeito da viagem do primeiro-ministro Tony Blair à Líbia é por que ele achou que deveria ir. Depois do encontro com o líder mais excêntrico e imprevisível do mundo árabe, Blair descreveu a ocasião como "extraordinária".
E realmente é: a primeira visita de um líder britânico desde a derrubada da família real há mais de 30 anos -e mais ainda pelo reconhecimento da Líbia de sua responsabilidade na morte da policial Yvonne Fletcher (assassinada com um tiro em frente à Embaixada Líbia em Londres em 1984) e na derrubada do avião da Pan Am em Lockerbie (1988).
Blair tem razão ao argumentar que há motivos para celebrar o arrependimento de um pecador. Por mais desagradável que seja às famílias dos assassinados, um reatamento e uma reconciliação com a Líbia que levem à admissão de culpa e à indenização é melhor do que o prolongamento do isolamento do país norte-africano.
Também pode-se aceitar parte da justificativa do premiê de que, na crise atual do terror, é melhor ter Estados delinqüentes do seu lado do que contra si. Se o programa nuclear da Líbia era avançado, ou ao menos sério, é um ponto controverso. Faz muito tempo, também, que Gaddafi esteve ativamente engajado no apoio a grupos terroristas na Europa. Contudo o simbolismo de sua renúncia pública ao terrorismo e às armas de destruição em massa não devem ser menosprezados.
Igualmente, porém, não deve ser menosprezado o simbolismo de um primeiro-ministro britânico pegar um avião para apertar a mão cheia de sangue de um ditador. Trata-se de um homem que ainda prende seus opositores e busca relações próximas com alguns dos mais desagradáveis e destrutivos regimes da África. O número de pessoas presas e torturadas, considerando-se as dimensões e a população pequenas do país, coloca Gaddafi bem perto do topo dos regimes repressivos.
Ainda assim, nem uma palavra sobre isso foi dita pelo primeiro-ministro, ou sua comitiva, antes ou durante a viagem a Trípoli.
Sim, estávamos certos em fazer um acordo com um país ansioso em sair das sombras. Manter relações é mais produtivo do que invadir, como argumentamos não apenas em relação à Líbia, mas também nos casos do Irã e da Coréia do Norte. Mas por que ir tão longe com esse aperto de mão simbólico em um acordo que já havia sido selado também com França e Estados Unidos? Depois de mandar um assistente do ministro no ano passado, o passo seguinte deveria ter sido enviar o ministro das Relações Exteriores. É para isso que ele existe.
A resposta, mais uma vez, está na crescente atitude defensiva de Tony Blair em relação à invasão do Iraque. Ele precisava dessa oportunidade de atrair câmeras e microfones para mostrar que a derrubada do Iraque rendeu dividendos no Oriente Médio, que era capaz tanto de negociar quanto de fazer guerra, e que ainda é um protagonista no cenário mundial.
Infelizmente, a mensagem que circulará pelo Oriente Médio e que chegará ao Reino Unido é bastante diferente. A mensagem será a de que no novo mundo do terror estamos abandonando aquelas preocupações éticas que o primeiro-ministro tão orgulhosamente apregoou quando assumiu o poder e que vive repetindo serem as razões pelas quais o Iraque foi invadido.


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