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POBREZA
Em livro sobre "favelização" mundial, americano diz que expansão das cidades está no limite e critica políticas brasileiras
"Fronteira urbana" chegou ao fim, diz Davis
FABIANO MAISONNAVE
DA REPORTAGEM LOCAL
Em Nova Déli, na Índia, as favelas incham 400 mil moradores
por ano. Quilômetros abaixo, em
Mumbai, os favelados já somam
12 milhões de pessoas. Em proporção, o primeiro lugar fica com
a Etiópia, onde 99,4% de sua população urbana mora em habitações precárias. E nos cortiços de
Lima, no Peru, a média é de 93
pessoas para cada latrina.
Esses e muitos outros exemplos
compõem o quadro apocalíptico
do livro "Planet of Slums" (planeta das favelas), publicado neste
mês nos EUA. Nele, o ensaísta Mike Davis analisa por que o fenômeno da migração para a área urbana se transformou num caos de
cerca de 200 mil favelas e 1 bilhão
de pessoas amontoados pelos países do Terceiro Mundo.
O Brasil e a África do Sul, com os EUA não muito longe, lideram no mundo a tentativa de substituir a segurança físico-arquitetônica para as classe médias pela justiça social aos pobres
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O problema-chave, segundo
Davis, é que as grandes cidades do
Terceiro Mundo não estão mais
crescendo empurradas pela demanda por mão-de-obra, mas se
dilatando pela reprodução da miséria, sem uma resposta adequada do poder público.
O resultado é que o processo de
favelização virou sinônimo de urbanização. Um dos exemplos do
livro é São Paulo: em 1973, as favelas paulistanas abrigavam apenas
1,2% da população. Ao longo dos
anos 1990, o salto foi para 16,4%
de seus moradores.
Ex-caminhoneiro e de formação marxista, Davis, 60, ganhou
notoriedade depois da publicação
de "City of Quartz" (cidade do
quartzo), um estudo já considerado clássico sobre a história de Los
Angeles. Leia, a seguir, trechos da
entrevista concedida à Folha:
Folha - Seu novo livro descreve
um processo aparentemente irreversível de favelização dos países
mais pobres. Chegamos a um ponto sem volta para resolver a questão habitacional?
Mike Davis - Claramente, de
acordo com especialistas em habitação de quase todos os países
pobres, chegamos ao final da
fronteira de áreas livres ou quase
livres para ocupação. Esse é um
fato da nossa época, sobretudo
porque tantos governos e instituições internacionais continuam
com a idéia de que o pobre tem
acesso à terra e pode resolver a
crise habitacional por meio de sua
própria determinação e engenho.
Mas o dia da ocupação heróica
acabou. A ocupação tradicional,
definida estritamente, é agora
apenas possível em locais residuais e perigosos, onde inundação, falhas no terreno ou proximidade a depósitos tóxicos fazem
com que a área seja quase sem valor, e a vida, uma constante luta
contra o desastre. Em todos os
outros lugares, a terra periférica é
uma mercadoria -legal ou ilegalmente pertencente a especuladores, políticos ou entidades tribais que vendem a terra para residentes pobres.
As pesquisas mostram uma convergência perigosa de custos habitacionais crescentes (o fim da fronteira e da terra ocupável) com a supersaturação de setores econômicos informais
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Essa "urbanização pirata", como tem sido chamada várias vezes, é efetivamente a privatização
das ocupações. Pessoas muito pobres, sejam filhas da cidade ou migrantes do interior, atualmente
alugam seu pequeno barraco (geralmente de moradores de favela
mais antigos e ligeiramente mais
ricos) ou são forçadas a construir
em lugares precários ou nas regiões limítrofes, onde os custos de
transporte anulam as vantagem
da terra livre ou barata. Na habitação, assim como na economia informal, testemunhamos o que pode ser chamado de "marginalização dentro da marginalidade".
Folha - O sr. afirma que, em algumas cidades, já é impreciso o uso
do termo periferia, pois as favelas
se tornaram o centro da vida urbana. O que acontece quando uma cidade atinge esse ponto?
Davis - Ninguém sabe. A periferia, obviamente, assume diferentes formas. Em alguns casos, os
pobres estão seguindo os empregos, o que, suponho é a melhor
opção. Em outros casos, estão
simplesmente exilados pelo alto
custo das áreas ou expulsos pela
renovação das favelas. O deslocamento de uma borda para o centro absorve crescente e quase insustentável quantidade de tempo
e dinheiro. Em Nairóbi e em outras cidades africanas e asiáticas,
os pobres gastam mais em transporte do que em moradia, medicamento ou em educação para
suas crianças. O grande problema
da forma urbana é esta: urbanização que não consegue criar urbanismo, que simplesmente empurra as pessoas mais para fora (consumindo valiosas terras agricultáveis e reservas ambientais no processo) e fracassa em fornecer
qualquer aparato de integração
da cidade tradicional. Todas as
contradições da suburbanização
dos países ricos se tornam exponencialmente maiores nas cidades pobres.
Folha - Recentemente o Exército
interveio em algumas favelas do
Rio, atraindo apoio de parte da
classe média. A segurança pública
deveria ser a grande prioridade?
Davis - Em primeiro lugar, "segurança pública" é uma definição
enganadora. Operações militares
e prisões em massa simplesmente
agravam a insegurança urbana no
longo prazo. Ao menos que se esteja preparado para exterminar
classes inteiras de pessoas, a criminalização da desigualdade simplesmente armazena o problema
em prisões desumanas, onde finalmente será exportado de volta
para as ruas de uma forma mais
violenta. Além disso, o crime de
rua é sempre pior onde a polícia é
mais corrupta e e sem regras. Os
maus policiais são o maior problema criminal do mundo. Na
forma como entendo o Brasil, a
raiz mais profunda da "insegurança" -à parte dos níveis fantásticos de desigualdade socioeconômica- é que os pobres universalmente vêem a polícia como
incorrigivelmente corrupta, predadores ao invés de protetores. A
ditadura declarou guerra contra
as favelas porque as viam como
incubadoras da subversão; a ditadura foi substituída pela democracia burguesa, mas a guerra nas
favelas tem continuado de forma
incessante, e os militares mantiveram muito de sua liberdade para
operar sem consideração aos direitos humanos.
Claramente o Brasil e a África
do Sul, com os EUA não muito
longe, lideram no mundo a tentativa de substituir a segurança físico-arquitetônica para as classe
médias pela justiça social aos pobres. Obviamente, é um círculo
vicioso: quanto mais as classes
médias se retraem do espaço urbano público e cidadão -ou
quanto mais eles permitem que a
polícia e os guardas privados
ajam foram da lei- mais os pobres acreditarão que a cidade está
em um estado de guerra, com as
gangues tão legítimas como governo quanto o Estado.
Folha - Como o sr. explica o paradoxo, identificado no seu livro, de
que muitas cidades do Terceiro
Mundo cresceram apesar da decadência econômica?
Davis - Ninguém pode explicar
totalmente esse paradoxo, mas a
resposta simples é a subdivisão da
pobreza -o que chamo de "involução urbana". À medida que as
pessoas se amontoam em nichos
de sobrevivência informal -ambulantes, diaristas, prostituição,
serviço doméstico, pequenos crimes etc.- mais pobre a massa se
torna. Sei que [o economista peruano Hernando] De Soto e outros populistas neoliberais acreditam que o microempreeendedorismo pode fazer milagres, mas isso é apenas verdade em casos isolados. Sempre será possível identificar milionários que eram mendigos anos antes, mas isso negligencia o número muito maior de
pessoas que eram operários e funcionários públicos e hoje são
mendigos. Não há evidência em
escala macro de que a economia
informal é um motor de crescimento ou um futuro viável para
os pobres da cidade.
O meu livro argumenta que, pelo contrário, as pesquisas mostram uma convergência perigosa
de custos habitacionais crescentes
(o fim da fronteira e da terra ocupável) com a supersaturação de
setores econômicos informais (o
problema da "involução"). Então
o que acontece? O pior exemplo é
Kinshasa (Congo, ex-Zaire), uma
cidade com grande espírito, mas
em condições indescritíveis de
negligência, onde as crianças são
deixadas na rua porque as famílias não podem mais ter um nível
mínimo de sobrevivência.
Folha - O sr. cita um programa da
administração do PT em São Paulo
para mostrar o fracasso da política
apoiada pelo Banco Mundial (Bird)
de melhorar favelas. Por que não é
um caminho viável?
Davis -As estratégias contemporâneas de habitação e desenvolvimento econômico adoram uma
estratégia "de perfumaria". Deixando de lado o números de
exemplos em que "favelas-modelo" financiadas pelo Bird se transformaram em tudo menos em
modelo, os sucessos dessa estratégia são quase insignificantes na
escala macro: levaria séculos para
alcançar justiça habitacional ou
"empoderamento" nesse ritmo.
No melhor caso, o Bird e os governos reformistas fornecem apenas
recursos suficientes para promover a mobilidade econômica de
uma pequena fração da classe trabalhadora: recompensar membros do partido, cooptar possíveis
ativistas e vencer a próxima eleição (ou dar a ONGs colaboradoras credenciais para restituir aos
seus doadores). É um mundo de
pequenas fábricas de filantropia e
auto-ajuda que dificilmente faz a
sociedade progredir.
Folha - . Apesar do amplo espectro ideológico dos governos do Terceiro Mundo, parece que o sr. não
encontrou nenhuma política habitacional eficiente. É um sinal de
que a esquerda e a direita falharam
ou a culpa é sobretudo do capitalismo globalizado?
Davis -De certa forma, você me
pegou aqui. A solução -de forma abstrata, pelo menos-tem de
ser um sistema que preserva todos os elementos criativos de autoconstrução com um aumento
radical de investimento social (na
forma de compra de materiais,
serviços de engenharia e desenvolvimento de infra-estrutura).
Não há uma forma prática de solucionar a crise urbana em lugar
nenhum sem uma verdadeira taxação progressiva, controle de desigualdade e do consumo de ostentação e controles draconianos
sobre a especulação imobiliária.
Isso ocorreu em Cuba no início
(embora desviado pela crescente
dependência dos modelos soviéticos e pelo embargo americano) e
está acontecendo em Caracas, de
certa forma, hoje. Posso estar errado, mas não creio que o PT já teve uma posição ou a vontade de
fazer uma reforma fiscal radical
ou limitar os privilégios dos ricos.
Folha - O sr. argumenta que a
"manhattanização" (verticalização) das favelas cariocas é parte de
uma tendência mundial de falta de
espaços nas metrópoles. Quais os
problemas -sociais e ecológicos-
que isso acarreta?
Davis - A densificação é positiva
porque é ambientalmente eficiente. A densificação é ruim quando
acompanhada com o espalhamento e a destruição do espaço
verde e dos pulmões da cidade.
Rio e Istambul são exemplos fascinantes onde favelas baixas e
"gecekondus" se tornaram arquipélagos de mini-Manhattans. Este
é um desafio para planejadores e a
arquitetura: a favela que almejam
subir para o céu.
Os problemas são imensos, mas
as oportunidades também. Todas
as cidades precisam de um laboratório do futuro -um bairro
onde crianças, poetas e utopistas
possam brincar com o futuro. O
Rio poderia congelar os aluguéis e
os valores de propriedade de uma
favela, retirar a polícia e convidar
os cidadãos a perseguir seus sonhos. Uma favela convertida em
estudo de caso, em que os arquitetos e urbanistas entram e saem,
mas deixam o poder de decisão
nas mãos dos moradores. Com o
tempo, as pessoas vão desenvolver fantásticas soluções e projetos, que os outros podem repetir
ou melhorar. Talvez até os ricos
sejam tentados a se mudar de seus
complexos fortificados.
Folha - De acordo com o sr., o racismo teve um papel importante na
definição sobre quem mora onde.
Qual é a importância da discriminação racial para a "favelização"?
Davis -A raça, sempre. Mas as favelas, precisamente por causa de
sua energia inter-racial e intercultural, são os dínamos de nossa
cultura planetária. Em Los Angeles, as indústrias da música e da
moda mantêm espiões nos guetos
e "barrios" para identificar as tendências que irão eventualmente
se espalhar para os subúrbios e as
classes médias. Além disso, a sensibilidade da diáspora negra fornece uma estrutura de sentimento para a juventude pobre urbana
(e muitos dos mais ricos) em cidades de quase todos os lugares. As
favelas e cortiços são incrivelmente locais e paroquiais, mas também são universais.
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