São Paulo, domingo, 26 de junho de 2011

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"Primavera iraquiana" resiste a repressão

Nascido no Facebook para defender bares em Bagdá, movimento ganha adeptos e incomoda governo pró-EUA

Após prender líderes, gestão de Nuri al Maliki libera protestos; jovens dizem que só querem "mudar mentalidades"


Igor Gielow/Folhapress
Os ativistas Moyed Altayeb, 29, Bassam Abdelazak, 27,e Hatem Tumi, 23 (da esq. para a dir.), se descontraem no bar da União dos Escritores do Iraque

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

A versão iraquiana da "primavera árabe" foi gestada para defender a abertura de um bar, ganhou corpo nas ruas e acabou sofrendo uma repressão dura do governo pró-Estados Unidos do país.
Sem contar com a publicidade e o apelo de suas primas mais famosas, como a egípcia, o movimento agora tenta se reorganizar.
A Folha conversou com seus líderes, que se tratam por "dude" ("cara", em inglês mesmo). E acompanhou o primeiro protesto após o governo supostamente democrático do Iraque ter jogado quatro deles em uma prisão por ocuparem todas as sextas a praça Tahrir (Libertação), homônima do famoso palco dos protestos egípcios, no centro de Bagdá.
Tudo começou em outubro passado. A prefeitura da cidade resolveu fechar bares que vendem álcool, que, diferentemente de outros pontos do mundo islâmico, são comuns no Iraque.

CALA-BOCA
"Era um jeito de falar para a gente calar a boca, parar de conversar abertamente. Há uma tradição, neste país, de debate, que tem de continuar", diz o produtor de vídeo Bassam Abdelazak, 27.
A trincheira foi montada na tradicional União dos Escritores do Iraque, que possui dois bares e um grande jardim.
É lá que jovens como Abdelazak passam seus fins de tarde discutindo cultura e política ""ou usando isso como desculpa para tomar cerveja morna por US$ 2 a garrafa, uísque e araque (destilado sabor anis).
Ele e os amigos Hatem Tumi, 23, e Moyed Altayeb, 29, lançaram uma campanha no Facebook: "Bagdá não é Candahar", em referência ao bastião purista do Taleban afegão. "Em dois meses, tínhamos mais de mil seguidores", conta Tumi.
Não é pouco: apenas 1% dos 30 milhões de iraquianos usa a internet, segundo o site Internet World Stats, que compila esses dados. Mas o dado não consegue medir o acesso dos jovens em cafés, que é grande.

RECUO DO GOVERNO
O movimento foi apoiado por alguns jornais e o governo cedeu, renovando as licenças de venda de bebida da União e outros bares. Mas algo havia mudado.
"Começamos a ser abordados por políticos e outros jovens. Aí o governo resolveu separar homens de mulheres no Instituto de Belas Artes de Bagdá. Fomos para a rua, agora nos queixando também da corrupção do [premiê Nuri al] Maliki", diz Altayeb, estudante de teatro e dança.
Maliki é apoiado pelos EUA, que derrubaram o regime de Saddam Hussein em 2003, viram uma guerra civil se desenvolver e ser controlada, e agora querem tirar a maioria dos seus 50 mil soldados no fim do ano.
No dia 4 de fevereiro, ocorreu o primeiro ato na praça. Meia dúzia de gatos-pingados apareceu "Mas a palavra se espalhou, e, com a primavera na Tunísia e no Egito, a coisa cresceu", conta a deputada Safia Taleb al Souhail. Segundo ela, houve um pico de 10 mil manifestantes em 27 de maio.
O dado é difícil de apurar, até porque há um blecaute informativo. Primeiro, por ser relativamente pequeno e com agenda difusa, não é chamativo. Segundo, para seus organizadores, não há vontade nos EUA de divulgar insatisfação contra o regime de Maliki ""que eles chamam de "vassalo" de Washington.

REPRESSÃO
Seja qual for o motivo, passou bem ao largo do noticiário a repressão de Maliki aos protestos naquele dia de pico. Altayeb e outros três líderes foram presos, e ficaram 12 dias incomunicáveis.
"Apanhamos muito, e queriam que disséssemos que estávamos sendo pagos pelo Partido Baath [de Saddam Hussein, proscrito] ou pela Al Qaeda", diz Altayeb.
Houve um novo protesto no dia 3 de junho e, no dia 10, o ato acabou em pancadaria provocada por manifestantes pró-regime.
"O governo reconheceu que havia exagerado, criou uma comissão para discutir a questão e ouvir os jovens", disse Numam Munnar, da ONG Amal ("esperança"), que faz parte do tal comitê. Ele defende que os garotos têm de criar um partido, o que por ora o grupo rejeita. Na maioria xiitas, os líderes se dizem antirreligiosos. Dois deles são filiados ao antigo Partido Comunista Iraquiano, inexpressivo no país.
Anteontem, o governo cumpriu a promessa de liberar os atos: todos voltaram à praça, menos Tumi, que segundo os amigos exagerou no araque na quinta.
A "primavera iraquiana" assim tenta retomar o curso. Como já ficou claro, basta comparar Egito e Líbia, "primaveras" são díspares em motivação e resultado. "Estamos só começando. Não queremos derrubar ninguém, mas mudar a mentalidade", sustenta Altayeb.


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