São Paulo, sexta-feira, 26 de outubro de 2007

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ELEIÇÕES NA ARGENTINA /MOVIMENTOS SOCIAIS

Verba de Kirchner dissolve "piqueteiros"

Presidente usa dinheiro público e enrijece lei para solapar aos poucos o principal movimento social argentino recente

Surgidos nos anos 90 com o maior desemprego e o fim da Previdência universal, manifestantes vivem apatia às vésperas das eleições

Fernando Canzian/Folha Imagem
Colliantes, do MTL, posa no conjunto habitacional onde mora, construído com ajuda do governo

FERNANDO CANZIAN
ENVIADO ESPECIAL À ARGENTINA

Em seus quase cinco anos de governo, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, patrocinou com dinheiro público e "mão de ferro" jurídica um desmonte sistemático da maior força popular que o país produziu nos anos 90. Os chamados "piqueteiros" são hoje grupos em extinção. Antes da posse de Kirchner havia mais de uma centena dessas organizações, que foram desmobilizadas ou diluídas em pequenos partidos.
A principal arma do governo contra as manifestações populares (que fechavam dezenas de rodovias no país e avenidas na capital até o início do mandato de Kirchner) foi a multiplicação de programas sociais e a sua centralização federal. Pagando cerca de US$ 50 (150 pesos) por cabeça ou residência, o governo chegou a atender cerca de 3 milhões de famílias em 2003 -ano da posse de Kirchner e seguinte ao fim da paridade peso/dólar, que levou a Argentina a uma crise sem precedentes.
A própria recuperação da economia argentina sob Kirchner acabou esvaziando o movimento. Em seu governo, o desemprego foi reduzido de 20,4% para 8,5%, e o nível de pobreza caiu de 50% para 28%.
Mas com os benefícios sociais e a recuperação econômica veio a aplicação metódica de medidas jurídicas duras para criminalizar protestos de rua.
Segundo Horácio Meguira, diretor jurídico da CTA (Central de Trabalhadores Argentinos), que reúne 1,2 milhão de trabalhadores, há 3.000 "piqueteiros" sendo processados hoje no país por "perturbação da ordem" ou "danos ao patrimônio". "Não houve mudanças na lei penal, mas uma criminalização sistemática das atitudes desses movimentos", diz.

Contrafluxo
Ainda há movimentos que resistem e se arriscam a protestar. Na quarta, por exemplo, o CCC (Corriente Classista e Combativa), criado em 1994, fechou parte da avenida 9 de Julho, no centro de Buenos Aires, para pregar o voto nulo na eleição deste domingo. "A política econômica de Kirchner não é inclusiva", disse Mariano Sanchez, líder do movimento, junto a manifestantes armados com pedaços de madeira.
O maior movimento "piqueteiro" hoje é o MTL (Movimiento Territorial de Liberación), com participantes em 19 Províncias. Carlos Chile, seu coordenador nacional, faz uma espécie de "mea culpa". Ele afirma que, com a recuperação econômica dos últimos anos, os movimentos "piqueteiros" acabaram "esgotando" a classe média argentina com sucessivos caos provocados pela interrupção de estradas e avenidas.
Hoje, o MTL segue uma linha bem pragmática. Em meados deste ano, por exemplo, o movimento conseguiu inaugurar um conjunto habitacional de 460 apartamentos, praça, biblioteca e outros serviços construído em uma antiga fábrica abandonada (e ocupada pelo MTL) na periferia de Buenos Aires.
O empreendimento custou US$ 6 milhões, foi financiado pelo Estado e construído em grande parte pelos próprios "piqueteiros" do MTL. Os moradores têm agora 30 anos para pagar suas casas, sem cobrança de juros nos empréstimos.
Berta Colliantes, 47, é uma das moradoras do conjunto, batizado de Parque Patrícios. "Já temos nossas casas, mas continuamos lutando para que outros companheiros do movimento consigam as suas", diz.
Os movimentos "piqueteiros" surgiram em meados dos anos 90 como reflexo da ruptura de dois pilares que sustentavam a coesão social argentina até o governo liberal de Carlos Menem (1989-99). Até a década de 90, desde os anos 40, a Argentina sempre teve pleno emprego (desemprego menor que 6%) e Previdência universal.
Novas leis trabalhistas e previdenciárias aprovadas sob Menem, aliadas a altos e baixos na economia, alijaram do mercado e da rede de proteção pública milhões de argentinos. A reação a essa precarização inédita para a atual geração adulta foi o surgimento dos "piqueteiros".


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