São Paulo, sexta-feira, 26 de novembro de 2004

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ANÁLISE

População só queria pôr fim à corrupção

QUENTIN PEEL
DO "FINANCIAL TIMES"

Pobre Ucrânia. Há séculos essa grande planície fértil vem sendo campo de batalha de outros povos -russos, poloneses, lituanos, alemães. Então, 13 anos atrás, a implosão da União Soviética lhe trouxe a independência nacional, condição com a qual sua população sonhava, mas que não imaginava seriamente conseguir.
Agora, o país parece mais uma vez estar destinado a se transformar em zona de confronto entre forças externas, em linha divisória entre a Rússia e o Ocidente.
O mundo externo toma partido, enquanto os eleitores ludibriados da Ucrânia saem às ruas às dezenas de milhares, exigindo uma recontagem dos votos que dê a vitória a Viktor Yushchenko, o candidato presidencial da oposição.
A Europa e os EUA dizem que foi a Rússia que começou (o problema), interferindo abertamente na campanha eleitoral ao apoiar Viktor Yanukovich, primeiro-ministro atual. O presidente russo, Vladimir Putin, foi à Ucrânia duas vezes para que sua mensagem fosse ouvida claramente.
Desde que a URSS se desfez, os russos de todas as crenças políticas têm dificuldade em aceitar que a Ucrânia se separou da mãe pátria. A maioria dos russos vê a independência da Ucrânia como aberração, algo a ser corrigido. Que um governo de Moscou deixe claro quem é seu candidato presidencial em Kiev é algo visto pelos russos como natural.
Os EUA e a União Européia estão, de certa maneira, criando condições propícias para essa reação russa. Eles não fizeram segredo de sua preferência por Yushchenko, visto como "pró-ocidental". Nesta semana, Putin deu sua resposta. Em seus atos, ele parece estar dizendo: "Não vamos deixar que Yushchenko ganhe".
A reativação de um confronto ao estilo da Guerra Fria coloca os ucranianos num dilema angustiante. Eles não podem dar-se ao luxo de optar entre Oriente e Ocidente, mas, contrariando seus próprios desejos, estão sendo forçados a fazer essa opção.
Para a maioria dos ucranianos, a eleição não dizia respeito a ser pró ou anti-Rússia. Ela era questão, sobretudo, de expulsar uma clique corrupta do poder. Mas a clique se originava da parte oriental do país, de idioma russo.
Não há dúvidas de que houve fraude na eleição. Na região de Donetsk, de língua predominantemente russa e habitada por 5 milhões de pessoas, 97% dos votos teriam sido de Yanukovich.
O país está dividido entre seu lado ocidental e nacionalista, em torno de Lviv, e sua parte oriental, de língua majoritariamente russa, centrada em Kharkov e na região de Donbass, produtora de carvão mineral. Mas a extensão dessa divisão pode ser exagerada -e é provável que o tenha sido, em grande medida em função da intervenção russa.
Os defensores de Yushchenko não votaram pela entrada imediata da Ucrânia na Otan ou na União Européia. Yushchenko chegou a declarar que retiraria as tropas ucranianas do Iraque, gesto hostil a Washington. Mas, pelo fato de ele representar uma atitude mais liberal, pró-mercado, levou sua campanha a ganhar uma dimensão involuntariamente pró-ocidental.
Os embaixadores da Ucrânia em todos os países da UE foram convocados para ouvir protestos contra a fraude eleitoral. Mas alguns desses protestos talvez sejam pouco enfáticos. É provável que os países da União Européia tenham menos dificuldade em conviver com uma vitória de Yanukovich do que com a de Yushchenko. Os grandes da UE não querem enfurecer Putin desnecessariamente.
Um governo ucraniano liberal e de tendência ocidental esperaria obter apoio financeiro substancial da UE para ajudar na reconstrução das instituições e da economia do país. Também esperaria ter uma perspectiva clara de tornar-se membro da UE. Mas Günter Verheugen, ex-comissário europeu encarregado da ampliação do bloco, tinha o hábito de dizer que a Ucrânia deveria ter "uma perspectiva européia, mas não uma perspectiva de tornar-se membro da UE" nos próximos 20 anos, pelo menos.
A realidade dura e inescapável é que os ucranianos estão, em grande medida, por conta própria, sozinhos. O que precisam é de tempo e espaço para colocar sua casa em ordem.
A melhor coisa que a Europa e os EUA poderiam fazer seria convencer Putin a afastar-se e deixar que a Ucrânia cuide dela mesma. Esse trabalho de convencimento pode não ser fácil.


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