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ARTIGO
Naufrágio universal?
RICARDO SEITENFUS
ESPECIAL PARA A FOLHA
O terceiro adiamento das eleições gerais do Haiti decorre de
múltiplas razões e sugere várias
questões.
A lista de alegações alonga-se a
cada dia: a suposta falta de apoio
financeiro, técnico e material da
comunidade internacional; a necessidade de elaborar um novo
cadastro eleitoral, pois o anterior
foi destruído e já era pouco confiável; as lamentáveis condições
de infra-estrutura em transporte e
comunicações; os embates de baixa política no interior do Conselho Eleitoral Provisório, composto por representantes de partidos,
e não por magistrados; a episódica, embora recorrente, violência
provocada por gangues que
atuam nas imensas favelas; enfim,
o desejo da grande maioria entre
os 35 (!) candidatos presidenciais
de virar a mesa, pois deste jogo
não poderão sair vencedores.
Diante desse espinhoso contexto, há um governo provisório enfraquecido, carente de legitimidade, que mais se parece um cata-vento enlouquecido pelas correntes que sopram sobre a "República de Porto Príncipe". Sem uma
trégua na constante luta travada
pelos caciques políticos da capital,
não há solução para o Haiti.
Contudo o centro do imbróglio
transcende o drama da antiga
"Pérola das Antilhas": é possível a
criação de um sistema de organização e de representação política
segundo os cânones da democracia, quando ausentes estão as condições mínimas para o seu efetivo
e real exercício?
Dizendo de outra maneira: a democracia é um produto assimilável, podendo ser embalado e servido em qualquer circunstância?
Ou, ao contrário, a democracia
resulta de um processo histórico,
ao longo do qual os cidadãos tornam-se progressivamente sujeitos de seu próprio destino e decidem com plena consciência que
tal sistema de governo é o mais
apto a responder a suas necessidades?
Enquanto a comunidade internacional não conseguir convencer os haitianos -particularmente aqueles que sempre se beneficiaram da ausência de democracia- de que a vontade da maioria
deve prevalecer e de que a minoria deve ser respeitada, as condições para a livre manifestação do
voto estarão hipotecadas. Todavia tal hipoteca não pode servir de
escusa para que a comunidade internacional volte as costas ao drama haitiano.
Torna-se indispensável abandonar paulatinamente tanto a caridade que orienta as ações das
organizações não-governamentais como o paternalismo condescendente que inspira a ação da comunidade internacional.
A aceitação do princípio da irresponsabilidade dos haitianos
como elemento fundador de suas
relações com o exterior carrega
consigo o germe da dependência
estrutural.
As eleições devem realizar-se
nas melhores condições possíveis,
estando todos cientes de que elas
estão longe do ideal. Uma vez
proclamado o vencedor, porém, a
comunidade internacional deve
apoiar um plano de emergência
capaz de resgatar a dignidade e a
esperança da população. A democracia inexiste sem conteúdo social, particularmente diante do
caos haitiano.
Caso a comunidade internacional repita erros do passado e
abandone o Haiti à sua própria
sorte, a atual crise será simplesmente um capítulo suplementar
de um drama sem fim, a martirizar um povo extraordinário.
O Brasil deve exercer toda a sua
influência para que o abandono
não ocorra. Caso contrário, a
mais corajosa e, por isso, brilhante decisão em política externa do
atual governo terá o inútil efeito
de um golpe de espada na água.
Ricardo Antonio Silva Seitenfus, 57,
foi consultor no Haiti da OEA (1993) e da
atual missão de paz da ONU (2004).
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