São Paulo, sábado, 26 de novembro de 2005

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ARTIGO

Naufrágio universal?

RICARDO SEITENFUS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O terceiro adiamento das eleições gerais do Haiti decorre de múltiplas razões e sugere várias questões.
A lista de alegações alonga-se a cada dia: a suposta falta de apoio financeiro, técnico e material da comunidade internacional; a necessidade de elaborar um novo cadastro eleitoral, pois o anterior foi destruído e já era pouco confiável; as lamentáveis condições de infra-estrutura em transporte e comunicações; os embates de baixa política no interior do Conselho Eleitoral Provisório, composto por representantes de partidos, e não por magistrados; a episódica, embora recorrente, violência provocada por gangues que atuam nas imensas favelas; enfim, o desejo da grande maioria entre os 35 (!) candidatos presidenciais de virar a mesa, pois deste jogo não poderão sair vencedores.
Diante desse espinhoso contexto, há um governo provisório enfraquecido, carente de legitimidade, que mais se parece um cata-vento enlouquecido pelas correntes que sopram sobre a "República de Porto Príncipe". Sem uma trégua na constante luta travada pelos caciques políticos da capital, não há solução para o Haiti.
Contudo o centro do imbróglio transcende o drama da antiga "Pérola das Antilhas": é possível a criação de um sistema de organização e de representação política segundo os cânones da democracia, quando ausentes estão as condições mínimas para o seu efetivo e real exercício?
Dizendo de outra maneira: a democracia é um produto assimilável, podendo ser embalado e servido em qualquer circunstância? Ou, ao contrário, a democracia resulta de um processo histórico, ao longo do qual os cidadãos tornam-se progressivamente sujeitos de seu próprio destino e decidem com plena consciência que tal sistema de governo é o mais apto a responder a suas necessidades?
Enquanto a comunidade internacional não conseguir convencer os haitianos -particularmente aqueles que sempre se beneficiaram da ausência de democracia- de que a vontade da maioria deve prevalecer e de que a minoria deve ser respeitada, as condições para a livre manifestação do voto estarão hipotecadas. Todavia tal hipoteca não pode servir de escusa para que a comunidade internacional volte as costas ao drama haitiano.
Torna-se indispensável abandonar paulatinamente tanto a caridade que orienta as ações das organizações não-governamentais como o paternalismo condescendente que inspira a ação da comunidade internacional.
A aceitação do princípio da irresponsabilidade dos haitianos como elemento fundador de suas relações com o exterior carrega consigo o germe da dependência estrutural.
As eleições devem realizar-se nas melhores condições possíveis, estando todos cientes de que elas estão longe do ideal. Uma vez proclamado o vencedor, porém, a comunidade internacional deve apoiar um plano de emergência capaz de resgatar a dignidade e a esperança da população. A democracia inexiste sem conteúdo social, particularmente diante do caos haitiano.
Caso a comunidade internacional repita erros do passado e abandone o Haiti à sua própria sorte, a atual crise será simplesmente um capítulo suplementar de um drama sem fim, a martirizar um povo extraordinário.
O Brasil deve exercer toda a sua influência para que o abandono não ocorra. Caso contrário, a mais corajosa e, por isso, brilhante decisão em política externa do atual governo terá o inútil efeito de um golpe de espada na água.


Ricardo Antonio Silva Seitenfus, 57, foi consultor no Haiti da OEA (1993) e da atual missão de paz da ONU (2004).

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