São Paulo, sábado, 26 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ÁFRICA

Governantes como o ugandense Yoweri Museveni podem ficar aquém das expectativas, mas têm méritos antes impensáveis

Novos líderes criam "democracia à africana"

MARC LACEY
DO "THE NEW YORK TIMES", EM CAMPALA

Uma maneira de avaliar o grau de repressão exercido por um presidente africano é posicionar-se no centro da capital de seu país e insultar o dito presidente.
Segundo esse critério, o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, não é dos piores. Recentemente ele vem sendo tachado de ditador, bandido, autocrata sedento de poder e coisas piores. E tem ouvido a maioria das críticas sem tentar eliminar quem fala mal dele, algo já feito nesse país.
Além disso, durante seus 19 anos no poder, Museveni vem tentando reconstruir a enfraquecida economia de Uganda, foi elogiado por sua liderança precoce no combate à Aids e, homem erudito, fala com paixão de seu desejo de modernizar, fortalecer e, sobretudo, pacificar seu país.
Durante o governo de Bill Clinton nos EUA, Museveni era retratado como membro da nova geração de líderes africanos democráticos e esclarecidos. O fato é que ele vem provando ser muito menos do que isso. Museveni e outros líderes semelhantes a ele -especialmente Meles Zenawi, da Etiópia, e Paul Kagame, de Ruanda- têm decepcionado quem esperava uma democracia em estilo ocidental emergir plenamente na África do século 21.
Entretanto, se não têm atingido a meta -segundo eles, a idéia de que pudessem fazê-lo é ingênua- , têm conseguido manter coesos países problemáticos, de instituições e tradições democráticas pouco desenvolvidas. Se isso ocasionalmente significa usar métodos autoritários, que seja, dizem. Isso é democracia em estilo africano, algo que o Ocidente é incapaz de entender.
A África, que possui longa tradição de tiranos, parece ter agora líderes melhores, embora imagens recentes transmitidas pela televisão de sua parte oriental pareçam mostrar uma região em crise. Por mais falhas que possa ter, Museveni não se assemelha ao cruel Idi Amin ou a Milton Obote, outro homem-forte ugandense do passado. Meles, o premiê linha-dura da Etiópia, difere profundamente do ditador que tirou do poder, Mengistu Haile Mariam. E, apesar do controle rígido sobre seu país, Kagame pôs fim à violência étnica do regime anterior.


Líderes na África conquistaram o direito de definir a democracia a seu modo. Desde que não a descartem

Mas esses líderes, saudados por Washington e outras capitais como salvadores da África, cada vez mais são vistos como meros mortais. "Não acho que Museveni tenha sido o líder que o mundo pensou que fosse", disse Proscovia Salaamu Musumba, vice-presidente do grupo oposicionista ugandense Fórum pela Mudança Democrática. "Foi uma ilusão."
O consenso geral é que, hoje, a corrupção é menos flagrante do que era nos governos anteriores, e as prisões dos opositores se tornaram muito menos frequentes.
"Eles (os governantes atuais) são melhores do que os anteriores, mas são iguais a estes em seu desejo premente de permanecer no poder", opinou Ted Dagne, analista da África junto ao Serviço de Pesquisas do Congresso, em Washington. Para ele, a política dos EUA para a África se concentra demais em personalidades, o que ele vê como erro político.
Possivelmente a mais destacada e ambígua dessas personalidades seja Museveni. Ao mesmo tempo em que Uganda se prepara para sua primeira eleição presidencial multipartidária desde sua chegada ao poder, na semana passada o governo prendeu o principal líder oposicionista, Kizza Besigye, sob acusação de traição. Besigye voltou a seu país no mês passado, do exílio. Foi recebido por multidões entusiasmadas e declarou-se candidato. Agora está na prisão de segurança máxima de Campala.
A imprensa ugandense, independente e combativa, freqüentemente incorre a ira do presidente, algo que ocorre em democracias de todo o mundo. Mas Museveni às vezes exagera na dose. Seu governo exigiu que o jornal independente "O Monitor" se retrate por um artigo sugerindo que o presidente tenha oferecido o comando do Exército ao irmão, que recusou, antes de escolher outro nome. Se o jornal não se retratar, corre o risco de sofrer sanções.
O governo também vem pressionando o jornal a demitir o repórter Andrew Mwenda, que já enfrenta acusações de sedição por artigos que irritaram ao presidente. Recentemente a polícia invadiu a gráfica em que o jornal é impresso, fazendo objeções a um anúncio que visava levantar fundos para a defesa legal de Besigye.
Mas Uganda ao menos tem uma imprensa independente, situação muito diferente do que acontece na Eritréia, onde há jornalistas na cadeia ou na clandestinidade e nenhuma voz é ouvida exceto a do presidente Isaias Afwerki. Também ele já foi, no passado, um "filho" favorito de Washington.
Nos países africanos, a presidência deixou de ser o cargo vitalício que foi no passado. No Quênia, Mwai Kibaki derrotou o partido governista em 2002 e, nesta semana, sofreu um voto de não-confiança que pode obrigá-lo a deixar o poder. Em outra prova de que os tempos mudaram, 15 ex-chefes de Estado africanos se reuniram no Mali alguns meses atrás para debater o papel que líderes que deixaram o poder podem desempenhar, fora do governo, para melhorar a situação da África.
Museveni está a ponto de entrar para esse grupo. Mas, com seu segundo e supostamente último mandato perto do fim, ele buscou derrubar os dispositivos constitucionais que limitam a permanência no poder, de modo a poder candidatar-se no próximo ano.
Resta no ar uma pergunta: se existe uma coisa chamada democracia africana. Não se trata de um oximoro total. Os governantes africanos enfrentam desafios extraordinários. Eles conquistaram o direito de definir a democracia à sua própria maneira e à maneira de seus países -desde que, nesse processo, não a descartem.

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Ásia: Explosão em usina na China pode gerar novo vazamento
Próximo Texto: Diplomacia: Até que ponto o Irã é perigo para o mundo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.