São Paulo, sábado, 26 de novembro de 2005

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DIPLOMACIA

A organização política interna do país estabiliza suas relações internacionais mais do que a pressão externa

Até que ponto o Irã é perigo para o mundo

ANGUS McDOWALL
RAYMOND WHITAKER
MARIE WOOLF
DO "INDEPENDENT"

Quando o assunto é a diplomacia do megafone, o Irã parece ter aumentado o volume para 11.
Depois da declaração do presidente Mahmoud Ahmadinejad, no mês passado, de que Israel deveria ser "varrido do mapa", e em meio a negociações em que a União Européia tenta demover o Irã do desenvolvimento de seu programa nuclear, o Ministério do Exterior iraniano voltou ao ataque. Na quarta-feira, o chanceler Manouchehr Mottaki disse: "Naturalmente pretendemos fazer enriquecimento de urânio em território iraniano".
Comentários como esses reforçam a imagem de um regime perigoso que está perto de desenvolver uma bomba nuclear e que talvez não hesite em fazer uso dela.
No entanto, o Irã é um país complicado e confuso, como não demora a perceber quem viaja a Teerã. O rosto sério e carrancudo do defunto líder revolucionário aiatolá Khomeini olha para a população com expressão intransigente de murais espalhados por toda a capital, mas nas ruas se vêem garotas antenadas com a moda, usando jeans apertados e maquiagem pesada. Outros murais proclamam a hostilidade oficial contra os EUA, o "Grande Satã", mas a juventude de Teerã consome o que há de mais recente em cinema e música dos EUA.
Quando se presta atenção mais cuidadosa ao discurso político, percebe-se que o quadro é menos monolítico do que aparenta ser à primeira vista. Embora o chamado do presidente Ahmadinejad para que Israel fosse varrido do mapa reproduzisse diretamente algo dito pelo aiatolá Khomeini, há anos uma declaração tão inflamatória não era lançada por alguém que ocupa posição tão alta no Irã, e outras figuras se apressaram a dar declarações mais brandas. O que presidente queria, disseram, era chamar a atenção para o fato de o mundo não ter implementado as resoluções da ONU condenando o tratamento dado por Israel aos palestinos.
Para muitos no Ocidente, porém, essas declarações tranqüilizadoras soaram demasiado semelhantes às afirmações sobre as ambições nucleares do Irã.
Há anos o regime vem insistindo que seu programa nuclear tem objetivos puramente civis, apesar de o país ser um dos maiores exportadores mundiais de petróleo e possuir mais reservas de gás natural do que qualquer outro país do mundo fora a Rússia. O Irã tem sido menos do que franco com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o órgão de vigilância nuclear da ONU. Com trunfos tão importantes em jogo, não se podia permitir que o discurso agressivo sobre Israel passasse sem ser contestado.
Entre os líderes que mais evidentemente endureceram sua posição estava Tony Blair, que no dia seguinte chamou o comentário de "inaceitável" e avisou o regime de Teerã que não se permitirá que se torne "ameaça à segurança mundial". Quinta-feira, em nome da União Européia, Blair divulgou uma declaração de intenção de reabrir as negociações sobre o programa nuclear do Irã.
"O Irã não deve concluir que esta janela de oportunidade ficará aberta em todas as circunstâncias", disse a declaração britânica, interpretada por analistas como uma ameaça de denúncia ao Conselho de Segurança da ONU.


Quando se presta atenção ao discurso político, percebe-se que o quadro é menos monolítico do que aparenta

Mas será que o presidente Ahmadinejad realmente falou em nome do Irã quando atacou Israel? Apesar de suas bravatas, a extensão da influência que ele exerce sobre a política externa e de segurança iraniana é discutível. Isso, por sua vez, levanta a questão de quem, de fato, exerce o poder em Teerã. Como mostram manifestações acompanhada de palavras de ordem e queima de bandeiras, a linha-dura iraniana se sente na crista da onda. Incentivado por sua vitória nas últimas eleições, pela receita petrolífera recorde e pelo fracasso da ocupação do Iraque, esse setor vem ganhando audácia.
Quando os EUA invadiram o Iraque, em 2003, a impressão que se tinha é que estavam dispostos a seguir adiante e enfrentar também o Irã. Hoje, a hipótese está fora de questão. O novo governo iraquiano é composto de velhos aliados iranianos entre os partidos xiitas e curdos. E os EUA estão atolados numa guerra de guerrilha que deixou suas forças vulneráveis e sobrecarregadas. A guerra no Iraque também proporcionou ao Irã a vantagem da alta dos preços do petróleo.
Até recentemente, acreditava-se que o Irã estivesse tendendo a uma abordagem mais conciliatória. Com metade de sua população com menos de 30 anos e aparentemente menos interessada em política do que em encontrar emprego e diversão, a expectativa era que o governo se mostrasse mais aberto aos interesses dela. O Irã começou a se abrir, permitindo a entrada de música pop e filmes estrangeiros e, no exterior, oferecendo um "diálogo de civilizações". Agora, porém, os slogans pós-revolucionários mais velhos vêm sendo gritados outras vezes, pedindo morte ao inimigo e vida eterna para os mártires revolucionários.
Sob uma perspectiva, o Irã é um país dominado por um grupo restrito de revolucionários de linha-dura que conservam a população jovem distante do poder, manipulando uma democracia falsa. Sob outra, a república islâmica teria sido legitimada pela população, que costuma comparecer para votar em grande número, garantindo a representação no processo decisório de um número suficiente de grupos de interesse para conferir equilíbrio ao Estado.
Ao topo da hierarquia, o sistema é opaco. A autoridade máxima é do Líder Supremo, o aiatolá Ali Khamenei. Ele herdou seu papel do carismático aiatolá Khomeini com a morte deste, em 1989. Sob o sistema iraniano de "Vilayat-e Faqih", ou o domínio da jurisprudência, o poder está nas mãos dos clérigos, já que eles são os que melhor podem interpretar as intenções de Deus para com a humanidade.
Abaixo do Líder Supremo vem o governo eleito: o presidente com seu gabinete e o Majlis, como é conhecido o Parlamento. Setores arquiconservadores assumiram o controle do Majlis em fevereiro de 2004, após uma eleição que muitos iranianos acreditam ter sido fraudada pela proibição de participação de candidatos reformistas. Neste ano, Ahmadinejad venceu a eleição para presidente, prometendo melhorar as condições de vida dos pobres, promovendo a distribuição melhor da receita petrolífera, que no ano passado foi de US$ 37 bilhões.
Mas uma série de outros grupos também participa do processo. O Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica vem ganhando poder nos últimos anos, e muitos iranianos acreditam que ele hoje controla a maioria das vozes que cercam o Líder Supremo, ao qual a guarda declara total devoção. O presidente Ahmadinejad é ex-integrante da guarda, como muitos dos novos deputados do Majlis.

Para a maioria, a meta é se manter no poder; essa meta é contraditória com o ataque direto a Israel

A guarda revolucionária tem 150 mil integrantes, recebe os melhores equipamentos militares e, recentemente, começou a desempenhar um papel significativo na economia do Irã, participando de licitações para assumir grandes projetos de engenharia petrolífera. Ela também é responsável pela milícia islâmica Basij, formada durante a guerra de 1980 a 1988 com o Iraque como unidade voluntária composta por rapazes e homens de terceira idade interessados em virar mártires da revolução. Foram os votos de membros da Basij que garantiram a vitória de Ahmadinejad, em junho.
Com a chegada dele ao poder, os aliados da direita pareciam ter tomado conta do poder por completo. Pela primeira vez desde a Revolução Islâmica de 1979, todos os ramos do poder estavam sendo administrados por uma única facção política. Desde então, porém, o aiatolá Khamenei vem tomando medidas para restaurar algum equilíbrio político ao processo de governo. No mês passado ele aumentou o poder do Conselho de Conveniência, encabeçado pelo candidato presidencial derrotado (e ex-presidente) Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, para que exerça mais autoridade sobre os outros ramos do poder.
"Mais setores de alto nível da linha-dura estão dizendo ao presidente: "olhe à sua volta'", falou um analista político em Teerã. "Sua equipe econômica não fez nada, e sua política externa é um fracasso. É hora de começar a encarar os problemas com seriedade."
Apesar das aparências, a política externa também funciona por consenso. Ela é formulada pelo líder e pelo Conselho Supremo de Segurança Nacional, organismo que inclui muitos dirigentes de elite, entre eles o presidente. O conselho garante que as decisões mais importantes -sobre a questão nuclear, o Iraque e as relações com o Ocidente- sejam acordadas por todo o escalão superior.
Para a maioria dessas figuras influentes, a meta é conservar-se no poder, e essa meta é contraditória com qualquer ataque direto a Israel. É provável que o desabafo de Ahmadinejad tenha sido para essas figuras um motivo tão grande de irritação e constrangimento quanto é a imagem do presidente: a de um filho de ferreiro que fala pelo povo. Mas Ahmadinejad não é alguém a quem se pode ignorar em segurança. Ele é muito mais representativo do sentimento das massas do que são os setores urbanos sofisticados de Teerã.
Em sua campanha eleitoral, Ahmadinejad usou em proveito próprio o paradoxo de que o petróleo sempre tem sido ao mesmo tempo bom e ruim para o país. Os iranianos com freqüência se sentem revoltados pelo fato de que, apesar de uma fortuna em dinheiro entrar no país, muito pouco parece chegar à população. Eles freqüentemente acusam os líderes de desviar os petrodólares para os próprios bolsos. Na realidade, a maior parte do dinheiro é gasto em programas mal administrados de emprego e subsídios.
Para o governo, os bilhões de dólares que ingressam no país lhe permitem comprar o apoio da população com programas de curto prazo, e ainda sobra bastante para projetos como a compra de armamentos e o programa nuclear. Tanto a China quanto a Índia estão ansiosas por fechar contratos para a compra de gás do Irã -a segunda maior reserva do mundo, perdendo apenas para a Rússia-, mas não está certo até que ponto estão dispostas a oferecer uma aliança estratégica em troca. A Índia votou contra o Irã na questão nuclear, mas as negociações para a construção de um gasoduto multibilionário que passaria pelo Paquistão continuam.
Com os conservadores iranianos tão em evidência, muitas pessoas esperavam que eles promovessem mudanças maiores. Até agora, porém, eles parecem estar mais interessados em modificações superficiais do que em reformas fundamentais. O tom tem sido mais religioso dentro do país e mais estridentemente nacionalista fora dele. "Antigamente havia uma linha de contato bastante flexível entre a população e o governo, mas agora ela está totalmente rígida", comentou Ali, funcionário público de meia-idade em um subúrbio de Teerã. "Sinto que o governo não está prestando atenção nenhuma a nós."
Em última instância, os setores de linha-dura sabem que sua base eleitoral é insegura. Apenas cerca de metade dos votos de Ahmadinejad na eleição saíram do núcleo conservador. Os restantes foram de pessoas que se deixaram conquistar por sua imagem tradicional, suas promessas de combater a pobreza e a corrupção. Mais que qualquer outra coisa, a população está interessada em suas próprias oportunidades e seu padrão de vida -coisas que, a longo prazo, exigem estabilidade política e reforma econômica dolorosa.
Para o restante do mundo, o dilema está em como deter a linha-dura bitolada e incentivar as tendências positivas no Irã.
Com a pressão internacional, um delegado iraniano na AIEA declarou quinta-feira que o país "está considerando" a possibilidade de realizar seu enriquecimento de urânio na Rússia, e não internamente.
O que o Reino Unido e outros países ocidentais admitem reservadamente, porém, é que cedo ou tarde este país pouco transparente e que induz o mundo à perplexidade quase certamente vai dispor de armas nucleares. A possibilidade de que faça uso impensado delas é menor do que se poderia temer, mas isso se deve mais a seu sistema interno próprio de freios e limites do que a qualquer influência externa.

Tradução de Clara Allain

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