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FEMINISMO MUÇULMANO
Tratamento dispensado à mulher em países islâmicos não tem fundamento no texto religioso
Alcorão não autoriza a discriminação
FREE-LANCE PARA A FOLHA, NO CAIRO
"Mas, se para a mulher é coisa
indecente tosquiar-se ou rapar-se,
que ponha o véu. O homem, pois,
não deve cobrir a cabeça, porque
ele é a imagem e glória de Deus,
mas a mulher é a glória do homem. Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do
homem. Porque também o homem não foi criado por causa da
mulher, mas a mulher por causa
do homem." Ao contrário do que
se pode imaginar, os versos acima
não foram tirados do Alcorão,
mas do Novo Testamento (1 Cor
11:6-9). Se, na prática, o islã parece
retrógrado e discriminatório contra a mulher, na teoria, em vários
aspectos, ele está muito à frente
do judaísmo e do cristianismo.
Entre os estudiosos das três religiões monoteístas, e entre feministas que interpretam os textos
religiosos, é quase unânime a conclusão de que, no que diz respeito
ao tratamento dispensado às mulheres, o Alcorão é mais avançado
e menos preconceituoso do que o
Antigo e o Novo Testamento. O
problema é que nem os muçulmanos parecem saber disso.
O machismo que se encontra
em países árabes, ou mesmo os
maus-tratos às mulheres, tem
muito pouco a ver com o Alcorão.
Às vezes, o contrário é verdade.
Apesar do Alcorão, certos países
árabes tratam as mulheres em total desrespeito às leis recitadas pelo profeta Muhammad. Um
exemplo disso são os homicídios
para "lavar a honra", como os que
acontecem na Jordânia, com respaldo da lei. O Alcorão não prega
a morte contra o adultério. E a punição se aplica tanto a mulheres
quanto a homens: "O adúltero e a
adúltera devem ser chicoteados
cem vezes cada um."
O problema é que as autoridades que interpretam o Alcorão
são invariavelmente homens. Ou,
mesmo quando o texto dá margem a mudanças, fica a critério
dos homens a vontade de mudar.
É esse o caso do verso contra a
"obscenidade". Mulheres culpadas de obscenidade em ato atestado por quatro testemunhas devem ser trancadas em casa "até
que a morte as leve ou até que
Deus indique a elas outro fim [por
meio de nova lei"". Segundo os
parlamentares jordanianos, Deus
ainda não indicou uma nova lei.
O véu é outro caso emblemático. Em verso algum o Alcorão diz
que a mulher deve cobrir a cabeça, muito menos o rosto. A única
parte a ser coberta, de acordo com
o Alcorão, são os seios. E não existe nenhuma punição para quem
não os cobre. Mesmo assim, é comum encontrar entre os muçulmanos quem acredite que o Alcorão expressamente recomende
que a mulher cubra a cabeça.
O Alcorão de fato prega a "modéstia" no vestir, mas a recomendação é feita tanto para homens
como mulheres. Assim como
também prega a castidade e recrimina a fornicação para homens e
mulheres.
Segundo a organização muçulmana Submission, com sede nos
EUA, o verso que trata da vestimenta da mulher é propositalmente vago. Segundo o texto,
Deus recomendou que as mulheres muçulmanas (e não todas as
mulheres, como é a ordem na
Arábia Saudita) "mostrem somente aquilo que é aparente", para que diferenças regionais e pessoais sejam respeitadas.
Superioridade
Entre aqueles que interpretam
as Escrituras, um dos exemplos
mais citados para atestar o avanço
do Alcorão é a maneira como Eva
é representada. No Gênesis, dependendo da tradução, Deus se
dá conta de que Adão precisa de
uma "auxiliar".
Eva é descrita como vinda do
homem, e é responsável pelo pecado original. Deus então pune a
mulher não só com as dores do
parto, mas com a paixão que a fará "arrastar-se pelo marido" e por
ele "ser dominada". A Adão, Deus
explica que vai castigá-lo porque,
entre outras coisas, ele deu ouvidos à "voz da mulher".
O Alcorão, por sua vez, em momento algum diz que a mulher
veio do homem. Em todos os versos em que descreve a Criação, o
Alcorão de fato diz que um veio
do outro, mas sempre usando um
nome sem gênero ("nafs", que,
segundo Ahmed Ali, tradutor do
Alcorão, significa, entre mais de
cem outras coisas, alma, ser, célula). A culpa pelo pecado original
também nunca é atribuída a Eva
somente.
Arbitrariedades, como a ordem
imposta pelo Taleban proibindo
as mulheres de trabalhar, mesmo
como professoras de primário,
não têm no Alcorão o suporte que
encontram na Bíblia, no Livro 1 de
Timóteo: "Que a mulher aprenda
em silêncio com toda submissão.
Eu não permito que nenhuma
mulher ensine ou tenha autoridade sobre o homem; ela deve se
manter calada. Pois Adão foi criado primeiro, e depois Eva. E Adão
não foi enganado, mas a mulher
se enganou e transgrediu".
As feministas muçulmanas em
geral se referem à historia da Península Arábica para provar que o
Alcorão veio como libertador das
mulheres, mesmo que hoje ele seja usado como instrumento de
opressão. Naquela época, o tratamento dispensado às mulheres
era tão degradante que o Alcorão,
examinado à luz do seu tempo, foi
um grande passo dado em direção à igualdade em um curto espaço de tempo.
Segundo a tradição, a sociedade
tribal e patriarcal do século 7º na
Península Arábica vivia o que ficou conhecido por Era da Ignorância. Naquela época, por exemplo, era comum o assassinato de
bebês do sexo feminino. Isso porque as mulheres corriam o risco
de virar espólio de guerra entre as
tribos, manchando assim para
sempre a honra das famílias. Capturadas pelas tribos inimigas, as
mulheres se tornavam propriedade dos vencedores e eram escravizadas, vendidas ou "alugadas".
Diante disso, não era raro que,
ao saber ter tido uma filha, o pai
enterrasse o bebê, muitas vezes
ainda vivo. Na época em que o Alcorão foi recitado o costume já
não era tão comum porque as
mulheres passaram a ser "vendidas" de uma família para outra
em troca do dote. O advento do
dote, que hoje impede casamentos no Egito e é de fato razão para
o infanticídio de meninas na Índia, foi durante a Era da Ignorância uma das coisas que ajudaram
a manter as mulheres vivas. O Alcorão foi outra. Um dos versos
descreve o dilema do pai ao saber
que teve uma filha: matar o bebê
ou criá-lo com desgosto.
Para o Alcorão, ambas as opções são odiosas: "Quando chegam notícias a um deles sobre o
nascimento de uma menina, o
rosto dele escurece e ele se toma
de uma dor silenciosa. Com vergonha ele se esconde do seu povo,
por causa da má noticia que recebeu, sem saber se mantém a
criança com desprezo ou se deve
enterra-la no chão. Oh, odioso é o
seu julgamento [decisão"".
A sobrevivência no deserto era
tão difícil, e bens primordiais, como a água, tão escassos, que às vezes a vida de uma tribo dependia
do que ela conseguia tomar de outra. Na rota dos mercadores, Meca era também palco de assaltos a
caravanas, razão pela qual a inimizade entre clãs se tornava eterna.
Com as guerras matando os homens, restavam abandonados as
viúvas e os órfãos. E não eram
poucos. Séculos antes, a Bíblia
(Levítico 19:9-10) aconselhava os
sumérios a não colher tudo o que
plantavam a fim de deixar restos
para aqueles que não tinham outro meio de sustento.
A grande incidência de morte
prematura de maridos com filhos
é uma das explicações mais comuns para a autorização, no Alcorão, de que o homem se case
com até quatro mulheres simultaneamente, com o intuito de ajudá-las e protegê-las.
Para os muçulmanos que não
aceitam a poligamia nem mesmo
sob a justificativa de se estar fazendo um bem à sociedade, Deus
teria "permitido" a poligamia
com uma adendo que, de fato, impossibilita tal prática.
Ao permitir que o homem se case com até quatro mulheres sob a
condição de que seja igualmente
justo com cada uma, Deus estaria
praticamente proibindo a situação, já que tamanha justiça é quase sobre-humana. "Case com as
mulheres que lhe pareçam boas,
duas, três ou quatro; e, se teme
não poder ser justo [com elas",
então [case com" uma, ou tenha
uma concubina, ou uma escrava.
Assim é mais provável que não
cometerá injustiça".
Pé de igualdade
Em princípios gerais, o Alcorão
coloca em pé de igualdade homens e mulheres e a importância
de cada um sob os olhos de Deus:
"Eu não permito que qualquer
gesto de bondade de qualquer um
seja perdido, seja ele homem ou
mulher: um de vocês é do outro."
Um verso em particular tornou-se o mantra das feministas para
mostrar que homens e mulheres
têm o mesmo valor no islã: "Em
verdade, homens e mulheres que
se submeteram [a Deus", homens
que acreditam e mulheres que
acreditam, homens que são devotos e mulheres que são devotas,
homens que resistem e mulheres
que resistem, homens que são
modestos e mulheres que são modestas, homens que dão esmolas
de caridade e mulheres que dão
esmolas, homens que jejuam e
mulheres que jejuam, homens
que são castos e mulheres que são
castas, e aqueles homens e mulheres que se lembram bastante de
Deus, para eles Deus tem perdão e
uma grande recompensa".
(PAULA SCHMITT)
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