São Paulo, sábado, 27 de março de 2010

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ANÁLISE

Muito além do Doutor Fantástico

IGOR GIELOW
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA


Não é preciso ser fã do "Doutor Fantástico" de Stanley Kubrick, o melhor filme já feito sobre a ameaça niilista da aniquilação atômica, para comemorar o acordo EUA-Rússia para a redução de capacidade nuclear. Mas ele traz ao menos duas vertentes subjacentes, uma das quais diz respeito diretamente às políticas brasileiras sobre o tema.
Primeiramente, o mais importante: é uma boa notícia em escala global a destruição de qualquer ogiva que nos lembre de que o homem é capaz de provocar o apocalipse.
É claro que seria preciso reduzir a algumas dezenas de armas, ou ainda menos, para evitar esse risco. Mas é um começo importante, não menos porque degela mais a relação entre Moscou e Washington, que andava siberiana desde a vitória militar russa contra a ocidentalizada Geórgia em 2008.
O componente político não explicitado é a renovação do TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear) em maio. A queixa dos países que criticam o tratado, como o Brasil, é o fato de que as potências atômicas não se desarmam enquanto pedem ao resto dos países que não tenham a bomba.
Isso é política oficial no Brasil, expressa na Estratégia Nacional de Defesa. Os EUA querem que o Brasil assine os Protocolos Adicionais do TNP, que preveem maior acesso de inspetores a instalações nucleares supostamente pacíficas.
Essa pressão está no centro da defesa politicamente desastrosa feita pelo Brasil do programa nuclear iraniano: o medo de que amanhã sejamos nós. A visão é míope, por colocar Brasília no mesmo nível da ostensivamente bélica Teerã.

Hipocrisia
Com o acordo anunciado ontem, brasileiros e seus amigos perdem parte de seu discurso ao chegar ao encontro, que acontecerá nos EUA. Russos e americanos poderão dizer que começaram a fazer sua parte, descontando a óbvia hipocrisia decorrente do fato de que ainda podem acabar com o mundo várias vezes.
A segunda vertente do acordo é econômica. Há um grande lobby da indústria energética americana pelo acordo. Os núcleos de material altamente radioativo das bombas desativadas são usados para alimentar usinas nucleares.
Hoje, cerca de 10% da energia consumida nos Estados Unidos vem desses núcleos. Para se ter uma ideia, hidrelétricas lá respondem só por 6%. Noventa por cento da força extraída de centrais nucleares na maior economia do mundo sai justamente de bombas do antigo arsenal soviético -só 10% vêm das similares americanas desmontadas.
Assim, ainda que muitíssimo bem-vindo, o acordo tem mais nuances que o velho doutor Fantástico poderia imaginar no seu mundo de 1964.


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