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ANÁLISE
Muito além do Doutor Fantástico
IGOR GIELOW
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Não é preciso ser fã do "Doutor Fantástico" de Stanley Kubrick, o melhor filme já feito sobre a ameaça niilista da aniquilação atômica, para comemorar
o acordo EUA-Rússia para a redução de capacidade nuclear.
Mas ele traz ao menos duas vertentes subjacentes, uma das
quais diz respeito diretamente
às políticas brasileiras sobre o
tema.
Primeiramente, o mais importante: é uma boa notícia em
escala global a destruição de
qualquer ogiva que nos lembre
de que o homem é capaz de provocar o apocalipse.
É claro que seria preciso reduzir a algumas dezenas de armas, ou ainda menos, para evitar esse risco. Mas é um começo
importante, não menos porque
degela mais a relação entre
Moscou e Washington, que andava siberiana desde a vitória
militar russa contra a ocidentalizada Geórgia em 2008.
O componente político não
explicitado é a renovação do
TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear) em maio. A
queixa dos países que criticam
o tratado, como o Brasil, é o fato
de que as potências atômicas
não se desarmam enquanto pedem ao resto dos países que não
tenham a bomba.
Isso é política oficial no Brasil, expressa na Estratégia Nacional de Defesa. Os EUA querem que o Brasil assine os Protocolos Adicionais do TNP, que
preveem maior acesso de inspetores a instalações nucleares
supostamente pacíficas.
Essa pressão está no centro
da defesa politicamente desastrosa feita pelo Brasil do programa nuclear iraniano: o medo de que amanhã sejamos nós.
A visão é míope, por colocar
Brasília no mesmo nível da ostensivamente bélica Teerã.
Hipocrisia
Com o acordo anunciado ontem, brasileiros e seus amigos
perdem parte de seu discurso
ao chegar ao encontro, que
acontecerá nos EUA. Russos e
americanos poderão dizer que
começaram a fazer sua parte,
descontando a óbvia hipocrisia
decorrente do fato de que ainda
podem acabar com o mundo
várias vezes.
A segunda vertente do acordo é econômica. Há um grande
lobby da indústria energética
americana pelo acordo. Os núcleos de material altamente radioativo das bombas desativadas são usados para alimentar
usinas nucleares.
Hoje, cerca de 10% da energia
consumida nos Estados Unidos
vem desses núcleos. Para se ter
uma ideia, hidrelétricas lá respondem só por 6%. Noventa
por cento da força extraída de
centrais nucleares na maior
economia do mundo sai justamente de bombas do antigo arsenal soviético -só 10% vêm
das similares americanas desmontadas.
Assim, ainda que muitíssimo
bem-vindo, o acordo tem mais
nuances que o velho doutor
Fantástico poderia imaginar no
seu mundo de 1964.
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