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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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ELEIÇÕES NA ARGENTINA

Há um ano e meio, país gritava "que se vayan todos'; no 1º turno, porém, os rostos são bem conhecidos

Votação hoje ignora exigência de renovação

Natacha Pisarenko - 24.abr.2003/Associated Press
Simpatizantes de Carlos Menem exibem boneco do ex-presidente durante comício do candidato


CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

Chora a capa da revista de esquerda "Veintitres": "Vuelven todos".
Em apenas duas palavras, é uma descrição bastante apta de como termina, hoje, uma eleição que nasceu, faz um ano e meio, ao grito de "que se vayan todos", reforçado pelos golpes nas panelas.
Foi-se, de fato, apenas Fernando de la Rúa, o presidente obrigado a renunciar pelos panelaços, em dezembro de 2001.
A prova mais evidente de que "voltam todos", como lamenta a revista, é o fato de que um dos cinco candidatos presidenciais com chances de passar ao segundo turno é o peronista Adolfo Rodríguez Saá, justamente o sucessor de De la Rúa e o segundo a cair ao som das panelas e do grito "que se vayan todos".
Todos os outros quatro candidatos presidenciais importantes têm muita quilometragem rodada nas estradas da política argentina e, por extensão, nem remotamente cumprem o requisito de renovação geral contida no grito "que se vayan todos".
Carlos Saúl Menem ficou dez anos no poder e plantou as sementes da crise que arrastaria seu sucessor à renúncia e que colocou nas gargantas dos argentinos o "que se vayan todos".
Ricardo López Murphy foi, a rigor, a primeira vítima de um "cacerolazo", na forma de um protesto estudantil que o defenestrou do Ministério da Economia dez dias depois de assumir, em 2001.
Néstor Kirchner, também peronista, foi, por 12 anos, governador da Província de Santa Cruz e, pelo menos na primeira fase, um fiel a Menem, que agora é seu principal inimigo.
Por fim, Elisa "Lilita" Carrió é deputada, dissidente da centenária União Cívica Radical e aderiu ao "que se vayan todos", até que percebeu que ninguém iria e, portanto, seria melhor que ela também ficasse e tentasse ocupar a Casa Rosada, a sede do governo.
O que aconteceu entre o grito de cólera e a acomodação a uma eleição com rostos apenas um pouco diferentes dos habituais?
A melhor -e mais óbvia- resposta está nos cartazes de campanha da IU (Esquerda Unida, da candidata Patrícia Walsh, sem a menor chance): "Para que "se vayan" é necessária uma alternativa política de poder".
Posto de outra forma: não há nem poderiam ser criadas em tão pouco tempo peças de reposição para o conjunto de políticos argentinos.
Por isso, o "que se vayan todos" ficou confinado ao grito de "vote em branco, anule seu voto, emita um voto programático ou não vá votar", conforme apelam partidos de extrema esquerda e organizações sociais que vão da Assembléia Popular de Belgrano-Nuñez (dois bairros de classe média, se ainda existe classe média na Argentina devastada) à Juventude Comunista Revolucionária.
É verdade que o grito de repúdio estará, sim, presente nas seções eleitorais, na fórmula da Confederación para que se Vayan Todos, uma das 19 que disputam a Presidência.
Não só não tem a menor chance como é encabeçada por um militar "carapintada" (os golpistas que encurralaram o presidente Raúl Alfonsín, revoltados pelos processos contra os que violaram direitos humanos na ditadura do período 1976-83).
É também verdade que o grito "que se vayan todos" será repetido no centro de Buenos Aires, junto ao Obelisco da mitológica avenida Corrientes, no fim da tarde de hoje.
A convocação está sendo feita por Raúl Castells, do Movimento Independente de Aposentados e Desempregados, e pelo Movimento Aníbal Verón, dois dos incontáveis agrupamentos comunitários, de bairro, de setores sociais, que foram surgindo para que a própria sociedade se defendesse da crise ou ao menos tentasse fazê-lo.
Foi nesse conjunto amorfo e heterogêneo que começaram os gritos de repúdio aos políticos em geral, até que aderiu a classe média, quando teve seu dinheiro retido no chamado "corralito", sempre em dezembro de 2001.
O grupo mais notório são os "piqueteros", desempregados especializados em cortar o trânsito em estradas ou vias urbanas, como forma de chamar a atenção para seus protestos.
Não é que os protestos tenham cessado. Mas o governo de Eduardo Duhalde, um especialista no assistencialismo, conseguiu alguma forma de controle social com o programa "Chefes e Chefas do Lar", que distribui 150 pesos mensais (algo como R$ 160), além de uma cesta básica, a 2,4 milhões de famílias.
"É mais fácil dizer que os políticos são todos filhos da puta do que assumir as responsabilidades que todos, em maior ou menor medida, temos neste fracasso. Veja os "piqueteros': com o poder que tinham, acabam reivindicando planos assistencialistas como os dos velhos políticos", reclama Susana Muñoz, militante do bairro de Almagro, para a revista "Veintitres".
Se a eleição de hoje marca "que todos ficam", significa que é definitivo? Não, responde Rosendo Fraga, responsável pelo Centro de Estudos Nueva Mayoria e um dos mais respeitados analistas argentinos.
"É muito provável que a palavra de ordem "que se vayan todos" ressurja, e em pouco tempo", diz.
Reforça, embora seletivamente, Oscar Raúl Cardoso, outro analista de prestígio: "Se ganha Menem ou López Murphy, não será um recomeço, mas apenas mais um ato da tragicomédia em que a Argentina está mergulhada há tanto tempo".
Seja como for, a cara com que nasceu a eleição que hoje se realiza está longe de ser a mesma que as urnas revelarão talvez ainda nesta noite.


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