São Paulo, segunda-feira, 27 de abril de 2009

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ENTREVISTA DA 2ª

FREDERIK DE KLERK
EX-PRESIDENTE DA ÁFRICA DO SUL

Dominância de partidos não é saudável para democracia

Para último presidente sul-africano sob o apartheid, acúmulo de poder da legenda governista e acusações contra novo presidente preocupam

Alexander Joe/France Presse
Simpatizantes de Jacob Zuma, eleito presidente da África do Sul nesta semana, comemoram em Johannesburgo; seu partido, o Congresso Nacional Africano, obteve a 4ª vitória consecutiva

O homem que libertou Nelson Mandela e depois foi seu parceiro no desmantelamento do apartheid sul-africano, o ex-presidente Frederik Willem de Klerk, 73, diz estar preocupado com o acúmulo de poder do Congresso Nacional Africano, que venceu mais uma vez uma eleição de forma esmagadora.
Em entrevista à Folha por e-mail, ele afirma que isso não é bom para a democracia, assim como não era bom o poder quase absoluto que o Partido Nacional, criador do apartheid, teve entre o final dos anos 40 e o começo dos 90.
"Não é saudável para partido nenhum, em qualquer democracia, ser muito dominante por muito tempo. A democracia é bem-sucedida quando há uma possibilidade realista de que o partido dominante possa ser derrotado nas urnas", diz.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

FÁBIO ZANINI
ENVIADO ESPECIAL A JOHANNESBURGO

FOLHA - Que balanço o sr. faz dos 15 anos desde o fim do apartheid, tendo em vista que, apesar do crescimento econômico, a desigualdade social cresceu na África do Sul?
FREDERIK DE KLERK
- Apesar dos desafios que nos confrontam, a nova África do Sul é uma sociedade muito melhor e mais justa do que a velha África do Sul. De acordo com o Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], África do Sul e Brasil estão no mesmo patamar de desigualdade. Em nosso caso, a maior razão é o fato de que quase 40% dos sul-africanos negros estão desempregados, o que é causado em parte por leis rígidas do mercado de trabalho, por educação inadequada e pelo ambiente econômico global.

FOLHA - O governo culpa o legado de 50 anos do apartheid pelo fato de que milhões de sul-africanos ainda não têm acesso a casas, eletricidade e saneamento. O sr. concorda?
DE KLERK
- Não. Quando eu terminei com o apartheid, nós já estávamos fazendo progresso na provisão de serviços para cada vez mais sul-africanos. Desde então, o governo do CNA construiu mais de 2,6 milhões de casas e expandiu a eletricidade e o tratamento de água para mais de 70% dos domicílios.

FOLHA - O sr. pediu para o eleitorado não votar no CNA. Por quê?
DE KLERK
- Eu mesmo não tenho filiação partidária, mas acho que não é saudável para qualquer partido, em qualquer democracia, ser muito dominante por muito tempo. A democracia é bem-sucedida quando há uma possibilidade realista de que o partido dominante possa ser derrotado nas urnas. Também estou preocupado com o número de decisões recentes e pronunciamentos do CNA que acredito podem ameaçar as leis e a independência do nosso Judiciário.

FOLHA - O que acontecerá com a África do Sul com a quarta vitória esmagadora do CNA em sequência? O sr. compararia a situação atual com o poder que tinha o Partido Nacional [que implementou o apartheid]?
DE KLERK
- Não tenho dúvida de que nossa democracia sobreviverá a uma quarta vitória do CNA. Há muitas democracias em que um partido único fica no poder por décadas. Mas não acho que isso seja bom para a democracia, seja no caso do CNA agora, seja no caso do Partido Nacional no passado.

FOLHA - Como o sr. vê a relação hoje entre a minoria branca e a maioria negra? No ano passado estive no campus da Universidade de Free State, em Bloemfontein, e fiquei impressionado ao ver que estudantes negros e brancos não conversam. Há harmonia racial nesse país?
DE KLERK
- As relações raciais no geral são muito boas. A verdade é que integramos nossas escolas, universidades e locais de trabalho com uma tensão surpreendentemente pequena e, aliás, com grande dose de boa vontade. Não há nada particularmente estranho no fato de estudantes negros e brancos não se misturarem em algumas universidades. A tendência da maioria das sociedades multiculturais é que as pessoas se associem dentro de seus próprios grupos. O pré-requisito importante é que haja respeito mútuo e não barreiras artificiais.

FOLHA - Jacob Zuma será um bom presidente?
DE KLERK
- Não se pode saber como será um presidente antes de ele ser. Porém, Zuma chegará ao poder com uma séria nuvem de acusações não resolvidas pairando sobre sua cabeça.

FOLHA - Como o sr. viu a decisão da Promotoria de interromper a investigação de corrupção sobre ele?
DE KLERK
- Com a maior preocupação possível. Não acredito que possa ser mantida quando for examinada à luz da lei, e me preocupo com o efeito que isso terá. Junto com a decisão de acabar com os Scorpions [unidade de elite da polícia que investigou Zuma] e a demissão do ex-chefe da Promotoria, isso vai infelizmente criar a impressão de que alguns líderes do CNA estão acima da lei.

FOLHA - Muitos brancos são hostis ao Black Economic Empowerment, mas parece óbvio que algum tipo de esquema de ação afirmativa é necessário, após a era do apartheid. Qual sua opinião?
DE KLERK
- Eu apoio o que diz nossa Constituição sobre ações afirmativas, mas não acredito que esse esquema tenha se mostrado o jeito certo de promover igualdade. Esse programa certamente ajudou a elite, mas não fez nada pelos 90% de negros mais pobres. A melhor maneira de promover igualdade é por meio do fortalecimento genuíno de todos os sul-africanos desfavorecidos, incluindo os 10% de brancos que agora vivem abaixo da linha de pobreza. Isso pode ser atingido oferecendo educação realmente decente, oportunidades de emprego, serviços sociais eficazes, habitação e saúde. Infelizmente, é precisamente nessas áreas que o governo do CNA fracassou de maneira mais lamentável, e também é uma das principais causas da contínua desigualdade em nossa sociedade.

FOLHA - Quais foram os maiores sucessos e fracassos da África do Sul nos últimos 15 anos?
DE KLERK
- Os maiores sucessos foram consolidar nossa democracia constitucional, assegurar 14 anos de crescimento econômico sustentável (até a atual crise global), diversificar nossa economia (no ano passado, turismo e produção de carros contribuíram tanto quanto a mineração) e reassumir nosso lugar de honra na comunidade de nações. Os maiores fracassos foram a maneira como o governo inicialmente lidou com a Aids e o catastrófico fracasso na educação dos negros e na criação de mais empregos.

FOLHA - Como o sr. vê a política externa sul-africana dos últimos anos, especialmente com referência a crises regionais, como o Zimbábue?
DE KLERK
- Em razão do sucesso de nossa transição pacífica para a democracia e de nossa excelente Constituição, ainda somos considerados pela comunidade internacional como um modelo para o resto da África. Nossa sociedade multicultural também pode servir como uma ponte natural entre África e Europa. Todos esses fatores nos ajudaram a falar mais alto na arena internacional. Sou crítico da maneira como o governo do CNA lidou com [Robert] Mugabe [presidente do Zimbábue]. Embora a habilidade da África do Sul de influenciar os acontecimentos no Zimbábue tenha sido superestimada, houve sem dúvida muitas luvas de veludo e poucos punhos de ferro na relação com Mugabe.

FOLHA - Olhando em retrospecto, não teria sido possível libertar Nelson Mandela e terminar com o apartheid muito antes dos anos 90?
DE KLERK
- Não teria sido possível fazer em 1980 o que fizemos em 1990 pelas seguintes razões: primeiro, foi só no fim da década de 80 que o CNA aceitou que não teria uma vitória revolucionária e que a única opção eram negociações genuínas. Segundo, o colapso da União Soviética ajudou muito. Nos anos 80, a maioria da direção executiva do CNA era também do Partido Comunista Sul-Africano, que lutava por uma clássica revolução comunista na África do Sul. Finalmente, em 1980 o eleitor branco não estava preparado para apoiar o processo de paz que eu iniciei em 1990.


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