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ENTREVISTA DA 2ª
FREDERIK DE KLERK
EX-PRESIDENTE DA
ÁFRICA DO SUL
Dominância de partidos não é saudável para democracia
Para último presidente sul-africano sob o apartheid, acúmulo de poder da legenda governista e acusações contra novo presidente preocupam
Alexander Joe/France Presse
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Simpatizantes de Jacob Zuma, eleito presidente da África do Sul nesta semana, comemoram em Johannesburgo; seu partido, o Congresso Nacional Africano, obteve a 4ª vitória consecutiva
O homem que libertou Nelson Mandela e depois
foi seu parceiro no desmantelamento do apartheid sul-africano, o ex-presidente Frederik
Willem de Klerk, 73, diz estar preocupado com
o acúmulo de poder do Congresso Nacional Africano, que
venceu mais uma vez uma eleição de forma esmagadora.
Em entrevista à Folha por e-mail, ele afirma que isso não é
bom para a democracia, assim como não era bom o poder
quase absoluto que o Partido Nacional, criador do apartheid,
teve entre o final dos anos 40 e o começo dos 90.
"Não é saudável para partido nenhum, em qualquer democracia, ser muito dominante por muito tempo. A democracia é bem-sucedida quando há uma possibilidade realista de que
o partido dominante possa ser derrotado nas urnas", diz.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
FÁBIO ZANINI
ENVIADO ESPECIAL A JOHANNESBURGO
FOLHA -
Que balanço o sr. faz dos 15
anos desde o fim do apartheid, tendo em
vista que, apesar do crescimento econômico, a desigualdade social cresceu na
África do Sul?
FREDERIK DE KLERK - Apesar dos
desafios que nos confrontam, a
nova África do Sul é uma sociedade muito melhor e mais justa
do que a velha África do Sul. De
acordo com o Pnud [Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento], África do Sul e
Brasil estão no mesmo patamar
de desigualdade. Em nosso caso, a maior razão é o fato de que
quase 40% dos sul-africanos
negros estão desempregados, o
que é causado em parte por leis
rígidas do mercado de trabalho,
por educação inadequada e pelo ambiente econômico global.
FOLHA - O governo culpa o legado
de 50 anos do apartheid pelo fato de
que milhões de sul-africanos ainda
não têm acesso a casas, eletricidade
e saneamento. O sr. concorda?
DE KLERK - Não. Quando eu terminei com o apartheid, nós já
estávamos fazendo progresso
na provisão de serviços para cada vez mais sul-africanos. Desde então, o governo do CNA
construiu mais de 2,6 milhões
de casas e expandiu a eletricidade e o tratamento de água para mais de 70% dos domicílios.
FOLHA - O sr. pediu para o eleitorado não votar no CNA. Por quê?
DE KLERK - Eu mesmo não tenho filiação partidária, mas
acho que não é saudável para
qualquer partido, em qualquer
democracia, ser muito dominante por muito tempo. A democracia é bem-sucedida
quando há uma possibilidade
realista de que o partido dominante possa ser derrotado nas
urnas. Também estou preocupado com o número de decisões recentes e pronunciamentos do CNA que acredito podem
ameaçar as leis e a independência do nosso Judiciário.
FOLHA - O que acontecerá com a
África do Sul com a quarta vitória esmagadora do CNA em sequência? O
sr. compararia a situação atual com
o poder que tinha o Partido Nacional
[que implementou o apartheid]?
DE KLERK - Não tenho dúvida de
que nossa democracia sobreviverá a uma quarta vitória do
CNA. Há muitas democracias
em que um partido único fica
no poder por décadas. Mas não
acho que isso seja bom para a
democracia, seja no caso do
CNA agora, seja no caso do Partido Nacional no passado.
FOLHA - Como o sr. vê a relação hoje entre a minoria branca e a maioria
negra? No ano passado estive no
campus da Universidade de Free
State, em Bloemfontein, e fiquei impressionado ao ver que estudantes
negros e brancos não conversam.
Há harmonia racial nesse país?
DE KLERK - As relações raciais
no geral são muito boas. A verdade é que integramos nossas
escolas, universidades e locais
de trabalho com uma tensão
surpreendentemente pequena
e, aliás, com grande dose de boa
vontade. Não há nada particularmente estranho no fato de
estudantes negros e brancos
não se misturarem em algumas
universidades. A tendência da
maioria das sociedades multiculturais é que as pessoas se associem dentro de seus próprios
grupos. O pré-requisito importante é que haja respeito mútuo
e não barreiras artificiais.
FOLHA - Jacob Zuma será um bom
presidente?
DE KLERK - Não se pode saber
como será um presidente antes
de ele ser. Porém, Zuma chegará ao poder com uma séria nuvem de acusações não resolvidas pairando sobre sua cabeça.
FOLHA - Como o sr. viu a decisão da
Promotoria de interromper a investigação de corrupção sobre ele?
DE KLERK - Com a maior preocupação possível. Não acredito
que possa ser mantida quando
for examinada à luz da lei, e me
preocupo com o efeito que isso
terá. Junto com a decisão de
acabar com os Scorpions [unidade de elite da polícia que investigou Zuma] e a demissão do
ex-chefe da Promotoria, isso
vai infelizmente criar a impressão de que alguns líderes do
CNA estão acima da lei.
FOLHA - Muitos brancos são hostis
ao Black Economic Empowerment,
mas parece óbvio que algum tipo de
esquema de ação afirmativa é necessário, após a era do apartheid.
Qual sua opinião?
DE KLERK - Eu apoio o que diz
nossa Constituição sobre ações
afirmativas, mas não acredito
que esse esquema tenha se
mostrado o jeito certo de promover igualdade. Esse programa certamente ajudou a elite,
mas não fez nada pelos 90% de
negros mais pobres. A melhor
maneira de promover igualdade é por meio do fortalecimento genuíno de todos os sul-africanos desfavorecidos, incluindo os 10% de brancos que agora
vivem abaixo da linha de pobreza. Isso pode ser atingido oferecendo educação realmente decente, oportunidades de emprego, serviços sociais eficazes,
habitação e saúde. Infelizmente, é precisamente nessas áreas
que o governo do CNA fracassou de maneira mais lamentável, e também é uma das principais causas da contínua desigualdade em nossa sociedade.
FOLHA - Quais foram os maiores
sucessos e fracassos da África do Sul
nos últimos 15 anos?
DE KLERK - Os maiores sucessos
foram consolidar nossa democracia constitucional, assegurar 14 anos de crescimento econômico sustentável (até a atual
crise global), diversificar nossa
economia (no ano passado, turismo e produção de carros
contribuíram tanto quanto a
mineração) e reassumir nosso
lugar de honra na comunidade
de nações. Os maiores fracassos foram a maneira como o governo inicialmente lidou com a
Aids e o catastrófico fracasso na
educação dos negros e na criação de mais empregos.
FOLHA - Como o sr. vê a política externa sul-africana dos últimos anos,
especialmente com referência a crises regionais, como o Zimbábue?
DE KLERK - Em razão do sucesso
de nossa transição pacífica para
a democracia e de nossa excelente Constituição, ainda somos considerados pela comunidade internacional como um
modelo para o resto da África.
Nossa sociedade multicultural
também pode servir como uma
ponte natural entre África e
Europa. Todos esses fatores
nos ajudaram a falar mais alto
na arena internacional. Sou crítico da maneira como o governo do CNA lidou com [Robert]
Mugabe [presidente do Zimbábue]. Embora a habilidade da
África do Sul de influenciar os
acontecimentos no Zimbábue
tenha sido superestimada, houve sem dúvida muitas luvas de
veludo e poucos punhos de ferro na relação com Mugabe.
FOLHA - Olhando em retrospecto,
não teria sido possível libertar Nelson Mandela e terminar com o apartheid muito antes dos anos 90?
DE KLERK - Não teria sido possível fazer em 1980 o que fizemos
em 1990 pelas seguintes razões:
primeiro, foi só no fim da década de 80 que o CNA aceitou que
não teria uma vitória revolucionária e que a única opção eram
negociações genuínas. Segundo, o colapso da União Soviética ajudou muito. Nos anos 80, a
maioria da direção executiva do
CNA era também do Partido
Comunista Sul-Africano, que
lutava por uma clássica revolução comunista na África do Sul.
Finalmente, em 1980 o eleitor
branco não estava preparado
para apoiar o processo de paz
que eu iniciei em 1990.
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