São Paulo, quarta-feira, 27 de novembro de 2002

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Venda de crianças amplia epidemia

BASILDON PETA
DO "THE INDEPENDENT", NA ZÂMBIA

Elvin Mudyakuvinda está vendendo suas duas filhas pequenas para poder alimentar as outras oito crianças de que cuida.
Ela diz que é sua última opção após ser forçada a vender tudo o que possuía -animais, talheres e roupas- para comprar comida.
Como muitos zambianos atingidos pela seca, Mudyakuvinda está presa em um círculo vicioso de pobreza e fome.
Mas, famílias desesperadas tentando vender suas filhas como "noivas" estão fazendo com que a Zâmbia mergulhe em uma epidemia de Aids que destrói seu tecido social, já que crianças forçadas ao casamento, e às vezes à poligamia, passam a ser tão expostas ao HIV quanto os adultos.
As duas filhas de Mudyakuvinda que estão à venda -Memory, 8, e Hildah, 13- já foram tiradas da escola. A fome lhes roubou a energia suficiente para caminhar os cinco quilômetros que separam sua casa da escola.
Agora, elas ajudam sua mãe a catar pedaços de madeira para fazer carvão, que elas tentam vender a motoristas na estrada que liga a capital, Lusaka, ao balneário de Livingstone. Mas não há interessados: ela não consegue vender carvão há quase duas semanas.
"É por isso que eu tenho de casar minhas filhas. Se vier alguém que possa pagar o que eu preciso, vai levá-las embora. Dói ter de fazer isso, mas não tenho opção."
Pretendentes interessados terão de pagar 600 mil kwachas (cerca de R$ 430) por cada filha. Isso garantiria à sua família um pouco de comida para os próximos meses.
Segundo Stella Goings, diretora do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) na Zâmbia, pelo menos 20% dos 11 milhões de zambianos estão infectados com o vírus da Aids, e, logo, a Zâmbia pode se tornar um dos países mais afetados pelo HIV.
O Unicef estima que 75% das famílias na Zâmbia tenham adotado pelo menos um órfão da Aids.
Goings afirma que o mundo tem de perceber que a fome, que afeta 3 milhões de zambianos e pelo menos 14 milhões de pessoas em toda a região sul do continente africano, está diretamente ligada à Aids. Qualquer tentativa de resolver o problema da fome que não tente lidar com a questão da Aids é totalmente equivocada, diz.
"É um círculo vicioso. Começa com crianças sendo vendidas como mão-de-obra, prostitutas ou noivas e acaba com os próprios pais se vendendo para ganhar dinheiro", afirmou. "O comportamento de risco que se segue leva ao HIV, que depois leva à diminuição da produtividade."
Muitos adultos e seus filhos estão doentes demais para trabalhar na terra, tornando-os dependentes de ajuda externa.
"Se deixarmos o HIV de lado e doarmos montanhas de comida, não vamos resolver o problema."
Depois de serem vendidas, as mulheres têm de permanecer casadas, não importa se sofrem abusos, já que os pais não têm dinheiro para comprá-las de volta.
Na Escola Básica de Simukombo, no distrito de Kazungula (sul do país), professores afirmam que 12 meninas de oito a 13 anos de idade deixaram a escola para que seus pais pudessem vendê-las para comprar comida. Elas pegaram Aids imediatamente, dizem.
Na Escola Maunga, a história é a mesma: 42 crianças, a maioria meninas, foram vendidas.
Os pais de Irene Simungo, 16, morreram de Aids. É sua avó de 70 anos que cuida dela agora -e de outros sete órfãos da Aids.
Por enquanto, Irene acorda cedo e colhe frutas perto de casa antes de caminhar quatro quilômetros até a escola. Mas ela logo terá de ser vendida, para que sua avó possa alimentar os outros.


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