São Paulo, quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

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ANÁLISE

Haiti: pedaço e inspiração para África no Caribe

DO ENVIADO A PORTO PRÍNCIPE

É comum dizer que o Haiti "não pertence" ao continente americano e que, na verdade, o país caribenho é um pedaço da África no hemisfério Ocidental.
Há muito de verdade nisso. Proporcionalmente, existem até mais negros no Haiti (95%) do que na África do Sul (80%), por exemplo.
Em desenvolvimento humano, a realidade dos haitianos é compatível com a africana. No ranking anual elaborado pela ONU, o Haiti ocupa o 149º lugar, à frente de 31 países africanos e atrás de outras 20.
Toda a paisagem urbana africana está firmemente implantada por aqui: mulheres equilibrando carga na cabeça, porcos passeando nas ruas, táxis com o vidro dianteiro rachado, vendedores sem troco, crianças com manchas de desnutrição no couro cabeludo.

Paralelo impreciso
Mas há algo de inadequado na comparação.
Em primeiro lugar, não há uma única África, assim como não há um Terceiro Mundo apenas. Existe uma África, sobretudo no centro e no sul do continente, que acharia profundamente injusta uma comparação com o Haiti. Uma África que tem um embrião de classe média e que poderia se virar para os haitianos e perguntar: onde está a sua?
Em diversos países africanos, há pelo menos bolsões de conforto e um esboço de mercado consumidor. Muito localizado, mas perceptível.
Aqui não, e, segundo me relatam, isso não pode ser posto apenas na conta do terremoto. O desastre só veio piorar o que -todos achavam- não tinha como ficar pior.
A última década foi de crescimento robusto em vários cantos da África, puxado por alta nos preços de commodities. Em alguns lugares -surpresa- existem inclusive boas práticas públicas.
Em cidades como Nairóbi (capital do Quênia), Dar-es-Salaam (Tanzânia) ou Campala (capital de Uganda), há negócios funcionando, advogados e engenheiros trabalhando e shopping centers sendo erguidos em meio à miséria predominante.
Ilhas de excelência e algo de um Estado que funciona, portanto.
Já a sensação predominante no Haiti é a de que não há para onde escapar, com terremoto ou sem terremoto.
Sim, há uma outra África que se aproxima mais do Haiti, a África que passou nos anos recentes por turbulência comparável -República Democrática do Congo, Guiné-Bissau ou Serra Leoa.
Nestes países, a sensação é a mesma: desolação.
Os haitianos podem responder com alguns fatos: nunca houve um genocídio em seu país, e as crises de fome não se comparam às de uma Etiópia.
Sobretudo, podem se consolar na história.
O Haiti foi a primeira república negra, 150 anos antes de outras surgirem na África. Sua revolução serviu de inspiração para o movimento da "negritude", a base ideológica da descolonização africana.
O Haiti pode ser considerado um pedaço da África. Mas a África também tem em si um pedaço do Haiti.
(FÁBIO ZANINI)

O autor é jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com mestrado em relações internacionais pela School of Oriental and African Studies (Soas), da Universidade de Londres, e titular do blog "Pé na África", hospedado na Folha Online e que deu origem ao livro homônimo, publicado pela Publifolha no ano passado



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