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CHOQUE NA FRANÇA
ARTIGO
Votação em Le Pen causa vergonha e ira
BERNARD-HENRI LÉVY
É uma tragédia que esses 17%
dos franceses, sejam quais forem
suas razões, tenham votado no
partido do ódio, da guerra civil e
do racismo.
É uma vergonha para o país que
fez sermões aos austríacos quando votaram em Haider, aos italianos quando votaram em Berlusconi e que, agora, se vê com Le
Pen, o pior dos três, frente a frente
com Chirac.
Vergonha e ira, diante dos irresponsáveis que brincam com o fogo há 20 anos e que, à custa de renúncias, adiamentos, acomodações, à força de nos dizer sem parar que Le Pen é um político como
os outros e que o voto na Frente
Nacional não passa de um voto de
protesto, do qual não será preciso
ouvir nem o saudosismo problemático nem os apelos à violência,
o banalizaram, o inscreveram na
paisagem e, desse modo, levaram,
no último domingo, ao penúltimo degrau de sua resistível ascensão.
Vergonha, e mais ira, ante os canalhas que hoje incendeiam sinagogas e ontem depredavam estádios de futebol e vaiavam a Marselhesa. A esses, dizíamos: "Vocês
falam como Le Pen, vocês se comportam como Le Pen, vocês preparam a cama para Le Pen e os
criminosos habituais que o cercam, ao levar a eles, de bandeja,
uma França com a qual sonham e,
ainda por cima, permitir que eles
façam o papel de moderados, salvadores".
E não é que chegamos a isso
mesmo: os defensores de Vichy,
essas pessoas que só gostam da
França doente, derrotada, humilhada, esses representantes de
uma extrema direita que um antigo premiê gaullista descreveu, no
passado, como "racista, anti-semita e xenófoba", esses outros
destruidores (mas de instituições
e de almas), esses homens que
nunca esconderam o ódio que
nutrem pela República, estão em
posição de ver um dos seus lançar
sua investida mais simbólica.
Ira, diante da extraordinária leviandade de milhares de eleitores
que, confundindo democracia
com espetáculo, se decidiram
com base num gesto, num assobio, numa crise de lágrimas ou
um jato de catchup, escolhendo
uma candidata porque a achavam
simpática, rejeitando outro pelo
único motivo de considerá-lo excessivamente "rígido", "velho" ou
"brega", escolhendo rostos em lugar de idéias, fisionomias e não
programas, renunciando, pela
primeira vez, a votar com a memória e aceitando, em sua embriaguez, essa anulação do campo
da memória, da história e das
convicções pela teleobjetiva da
mídia e de seus clichês.
Ira, sim, contra todos aqueles
que, ao jogar com os pequenos
candidatos como se zapeia pelos
canais da televisão, mergulharam
a França numa situação de pesadelo.
Isso dito, já não é mais hora
nem para essa ira nem para essa
vergonha.
Ainda não é chegada a hora,
tampouco, de escrever a história
dessa lepra vagarosa, essa lenta
decomposição do político e do social, da qual acabamos de chegar à
derradeira etapa.
O que é urgente agora -a única
urgência- é nos refazermos, é
apagar o absurdo daquilo que
acaba de acontecer, é fazer com
que o segundo turno redima a ignomínia do primeiro. A única
verdadeira urgência é agir para
que não apenas Chirac vença, mas
para que Le Pen seja esmagado.
Nem uma só voz deve se ausentar.
Nem um só voto deve ser deixado de lado desta vez.
É preciso transformar o voto em
Chirac no voto contra Le Pen.
É preciso que esse voto seja tão
límpido, tão maciço, que se torne,
não um ato de quitação ao presidente em término de mandato,
mas um recado inequívoco ao
aventureiro cuja simples presença
nos palanques da campanha, durante 15 dias, fará de nós motivo
de chacota em todo o mundo.
É vital não apenas "barrar o caminho da Frente Nacional" (ousamos esperar que isso já seja subentendido), mas gerar, em todo
o país, uma reviravolta que o faça
recair para os 10% ou 15% aos
quais deveria ter se limitado, não
fosse o nível inusitado de abstenção e o clima deletério que marcaram o primeiro turno. É vital mudar, nos espíritos dos eleitores, a
própria natureza do pleito, transformando o segundo turno num
grande referendo em favor dos
princípios republicanos que os seguidores de Le Pen rejeitam e que
são nosso solo, nosso cimento,
nossa constituição comuns.
Que Jacques Chirac seja ou não
o homem da situação, que ele
possua ou não a autoridade necessária para o papel, que haja
qualquer dificuldade, aos olhos
desses representantes da defunta
"esquerda plural", em enxergá-lo
como baluarte da democracia e
do direito, essas são questões sobre as quais o mínimo que se pode dizer é que teria sido melhor
formulá-las antes. Ele está aqui, e
é só isso. Logo, não temos outra
escolha.
Alguns dos derrotados (Fabius,
Mamère, Hue, Strauss-Kahn)
compreenderam isso desde os
primeiros minutos, e o fato de o
terem dito os honra.
Outros (como Besancenot) terão de compreender e declará-lo,
por sua vez. E precisam fazê-lo
com o mínimo de reservas, de cálculos, de rancores. Sempre haverá
tempo, depois das próximas duas
semanas, para pensar nas eleições
legislativas.
De minha parte, eu que, em 30
anos, nunca votei na direita, o farei no dia 5 de maio. Eu o farei no
espírito que expus. E, no fundo,
sem me deixar abater.
Bernard-Henri Lévy, 53, é um dos expoentes da "nova filosofia" francesa e
escreveu, entre outros, "O Século de Sartre" (2000). Foi correspondente de guerra nos anos 70 e fez parte do Grupo de
Especialistas do presidente François Mitterrand entre 1973 e 1976.
Tradução de Clara Allain
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