São Paulo, sábado, 28 de maio de 2011

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CLÓVIS ROSSI

Faltam muitos em Haia


Nações Unidas demoram para aceitar que possuem a responsabilidade de proteger a população civil

É OCIOSO enfatizar o quanto há a festejar no fato de o general Ratko Mladic ter sido finalmente preso e, ao que tudo indica, estar a caminho da corte de Haia para julgamento. Basta lembrar os seus apelidos: "Açougueiro da Bósnia" ou "Átila dos Bálcãs".
Feita a observação indispensável, cabe olhar para as sombras sobre o passado que a prisão de Mladic reaviva e para situações futuras.
Comecemos com a menção que fez ontem para o jornal "El País" a jornalista Cecilia Ballesteros, especialista nos Bálcãs: depois de dizer que as vítimas do massacre na Bósnia agora "têm a solução para tanta dor", ela torce: "Oxalá com [Muammar] Gaddafi e Bashar Assad não seja preciso esperar tanto".
O jornalista Adam LeBor, autor de uma biografia de Slobodan Milosevic, o ditador sérvio que morreu enquanto aguardava julgamento em Haia, também faz o paralelo Gaddafi/Mladic:
"O general Ratko Mladic, como Muammar Gaddafi, foi durante um tempo nosso amigo [dos países ocidentais], a ser cortejado e elogiado. Durante a Guerra da Bósnia, no início dos anos 90, uma corrente de mediadores, funcionários da ONU e interlocutores ocidentais fizeram "trek" nas colinas acima de Sarajevo [capital bósnia] para chegar a seu reduto em Pale".
Esse erro de avaliação sobre o "Átila dos Bálcãs" ajuda a entender como os capacetes azuis da ONU, presentes sobre o terreno em Srebrenica, foram impotentes ou incompetentes para evitar o genocídio. Ficou evidente, então, que havia lacunas operacionais e doutrinárias para que a ONU pudesse evitar massacres.
Agora, no entanto, não deveria haver mais. Nem para lidar com Gaddafi ou com o sírio Assad.
Exatamente como decorrência dos episódios na Bósnia, um grupo de especialistas produziu um relatório que lançou a sigla R2P (Responsibility to Protect ou Responsabilidade de Proteger).
Lee Feinstein, do Council on Foreign Relations, escreveria já em 2007 que o conceito "marcava o fim de um período de 350 anos no qual a inviolabilidade das fronteiras e o monopólio da força dentro das próprias fronteiras eram a marca registrada da soberania formal". Mais: "A adoção da doutrina começa a resolver, em favor dos indivíduos, a histórica tensão entre direitos humanos e direitos dos Estados".
Ainda assim, os países ocidentais esperaram até a undécima hora para decidir que tinham a responsabilidade de proteger a população de Benghazi e impedir uma nova Srebrenica, agora no Norte da África.
Mesmo assim, evitaram uma intervenção no terreno, o que permitiu um sítio a Misrata que lembra o de Sarajevo. E países como o Brasil preferiram se abster, declinando, portanto, da responsabilidade de proteger a população civil.
Uma segunda mancha na festa pela captura de Mladic foi mencionada pela CNN, ao dizer que ficou como mero pé de página a prisão, no mesmo dia, de Bernard Munyagishari, um dos responsáveis pelo genocídio em Ruanda, também nos anos 90. Na Bósnia, morreram 104 mil pessoas; em Ruanda, 800 mil.
Será que o fato de ter sido na África e entre negros, em vez de na Europa e entre brancos, explica a diferença entre a festa pela prisão de um e o silêncio pela do outro?

crossi@uol.com.br


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