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São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2003

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ENTREVISTA

Para o renomado historiador Jonathan D. Spence, é precipitado dizer que a China será a grande potência do século 21

Futuro chinês terá inúmeros obstáculos

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A China não será a maior potência, mas uma das grandes potências, do século 21, visto que seus problemas serão tão importantes quanto as oportunidades que ela terá e haverá países emergentes, como a Índia, e blocos econômicos, além das potências já existentes, que deverão pôr em xeque as conquistas e as intenções do país.
A análise é do renomado historiador britânico Jonathan D. Spence, diretor da Universidade Yale (EUA), uma das maiores autoridades em China do mundo e autor de "The Gate of Heavenly Peace: The Chinese and Their Revolution 1895-1980" (o portão da paz celestial: os chineses e sua revolução 1895-1980), "Em Busca da China Moderna" e "Mao".
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

 

Folha - Muitos especialistas sustentam que a China será a grande potência do século 21. O sr. concorda com essa análise?
Jonathan D. Spence -
Não creio que isso seja inevitável. Afinal, durante todo o século, os problemas da China serão comparáveis às oportunidades que ela terá, visto que se trata de um país imenso. Além disso, não podemos negligenciar as outras prováveis novas potências do século, como a Índia, as que já existem, como os EUA, os grandes blocos econômicos, como a União Européia, e os blocos emergentes, como o Sudeste da Ásia. A China enfrentará, portanto, muitos rivais tanto na esfera política quanto na econômica, o que deverá resultar num maior equilíbrio de poder.

Folha - Quais serão os principais problemas que a China enfrentará neste século?
Spence -
Há inúmeras questões importantes, mas, certamente, existirão outras que ainda não imaginamos. A questão da manutenção da lei e da ordem num país de 1,3 bilhão de habitantes será crucial. As fronteiras também são uma preocupação para os chineses, já que a China tem vizinhos bastante instáveis a oeste de seu território e problemas territoriais com seus vizinhos do sudeste.
É necessário salientar ainda o provável problema que o país terá com separatistas radicais, sobretudo muçulmanos fundamentalistas, no oeste de seu território. Há, logicamente, os desafios econômicos, pois os chineses ainda não tiveram sucesso em seu enorme esforço para desmantelar o sistema industrial estatal.
Obviamente, por conta da dimensão de sua população e do crescimento desordenado das zonas urbanas, a China também terá de enfrentar a escassez de terras aráveis. A China já tem hoje menos espaço arável que os EUA, o que deverá constituir um problema para o país a médio e longo prazos. Com isso, os chineses serão compelidos a importar muito mais alimentos do que importam hoje.
Aliás, no que se refere à sua balança comercial -que apresenta superávits extraordinários atualmente [descontado o frete, cerca de US$ 30 bilhões em 2002]-, o país também poderá ter problemas, já que suas exportações são compostas por produtos baratos de consumo de massa. Assim, outros países de mão-de-obra barata poderão minar a força das exportações da China, visto que não é difícil copiar seus produtos.
Há ainda o problema político, pois os chineses não têm hoje um governo representativo. No que concerne a essa questão, tudo dependerá do modo como o Partido Comunista se ajustará à realidade. E a militarização do Estado terá de ser reduzida. Finalmente, não podemos esquecer que a situação de Taiwan permanece relativamente tensa, já que a ilha continua a ser considerada uma Província rebelde por Pequim.

Folha - Como o sr. vê a intenção do presidente de Taiwan, Chen Shui-bian, de realizar um referendo para saber se os eleitores aprovam uma moção para pedir à China que retire as centenas de mísseis que tem apontados para a ilha?
Spence -
Há muito tempo, especialistas em China dizem que, no que diz respeito ao país, um referendo é sempre o pior modo de agir. Afinal, ele faz com que as questões pareçam ser apenas de uma forma ou de outra, enquanto, na verdade, elas são bem mais complexas. O melhor modo de proceder é a negociação política, não o referendo, que parece ser uma opção populista.
Ademais, há a enorme quantidade de investimentos de Taiwan na costa da China que está em jogo. Não se trata de uma questão simples. O referendo, embora pareça ser lógico, pois dá à população o direito de decidir, não é a melhor forma para resolver um problema geopolítico tão complexo quanto esse.

Folha - Como a situação de Taiwan evoluirá neste século?
Spence -
Se não houver um enfrentamento mais grave por conta do populismo dos líderes taiwaneses ou de um ato precipitado dos chineses, o cenário mais provável é o de uma aproximação ainda maior entre Taiwan e a China, sobretudo no campo econômico. É até possível que a ilha acabe conseguindo ter uma estrutura semi-independente, uma espécie de variação do status atual de Hong Kong. Até mesmo uma estrutura mais federativa merece ser levada em consideração.
No futuro, se os líderes chineses e taiwaneses entenderem de uma vez por todas que têm mais a ganhar do que a perder com a aproximação, Taiwan poderá gozar de uma situação bem menos delicada que a atual. Trata-se, portanto, de um caso em que intenções eleitoreiras só tendem a atrapalhar a melhora da situação. A questão também é complicada porque há diferentes visões da China em Taiwan, já que os jovens se sentem menos "chineses" que os mais velhos e não temem a força de Pequim como seus ascendentes.

Folha - Em termos históricos, quão comunista é o Partido Comunista da China atualmente?
Spence -
Tudo depende de qual sistema comunista estamos falando e de que época estamos analisando. Mas, se deixarmos de lado as respostas acadêmicas, perceberemos que, no que concerne à China, a questão é ainda mais complexa. O sistema chinês é hoje bem distante dos objetivos revolucionários traçados na primeira metade do século passado ou dos grandes movimentos de massa orquestrados por Mao [Tse-tung, líder da revolução chinesa de 1949] nos anos 50 ou 60.
Todavia ele ainda defende algumas das premissas do comunismo tradicional, como no que se refere à sua liderança política ou à sua vanguarda intelectual. Ainda há o chamado "centralismo democrático" defendido por Lênin [líder da revolução comunista na Rússia], no qual o partido guia a evolução do sistema. Ou seja, na versão chinesa do "centralismo democrático", os líderes políticos continuam a tomar decisões pelo país inteiro, sem debate.
Por outro lado, o governo chinês vem tentando modernizar-se, dando mais força a líderes jovens e altamente educados, como o atual presidente [Hu Jintao]. Com isso, o partido passa a ser uma espécie de escola para os futuros líderes políticos, mesmo que eles não sejam verdadeiramente comunistas na acepção tradicional da palavra. Eles recebem benefícios por estar no partido, mas são obrigados a ler certas obras nem a assistir a certos filmes. Muita gente faz parte do partido, porém não mais crê no sistema comunista.
O Partido Comunista tornou-se, portanto, um local de afiliação política local. Assim, as pessoas fazem parte dele porque isso favorece suas carreiras. Contudo isso não significa que elas sejam alvo da doutrinação que existia há algumas décadas. Mesmo assim, as pessoas que fazem questão de criticar abertamente o partido ainda podem sofrer consequências graves por seus atos de rebeldia.
As relações do partido com o capitalismo estrangeiro também são bem-sucedidas, o que faz com que as pessoas pensem que não há mais comunismo na China. O ponto é que existe o comunismo à chinesa, não o comunismo absoluto. O partido soube adaptar-se e, com isso, pôde manter-se bastante influente na sociedade. Ademais, os militares continuam a apoiá-lo, o que, obviamente, garante sua permanência no poder.

Folha - E quanto à Coréia do Norte? A China deixou de exercer forte influência sobre Pyongyang?
Spence -
A Coréia do Norte constitui uma questão complicada para os chineses, que se tem mantido estável há décadas, mas poderá tornar-se explosiva. Pequim busca desempenhar um papel de mediação no que se refere aos problemas norte-coreanos desde o final da Guerra da Coréia [1950-53]. A China também serve de contrapeso para o Japão, que invadiu a Coréia diversas vezes nos últimos cinco séculos.
Como o Japão se tornou um "inimigo" ainda maior da Coréia do Norte por fazer parte da esfera de influência dos EUA, a China passou a ter mais influência sobre Pyongyang. Todavia, como os russos quase abandonaram suas bases navais de Vladivostok [sudeste da Rússia], a China não precisa mais ter uma forte presença naval na região. Por outro lado, Pequim sabe que conseguiu desenvolver sua bomba nuclear sem a ajuda dos ocidentais e não quer ter um vizinho cheio de bombas.
Com isso, a China mantém uma posição de mediação entre os interesses financeiros de Pyongyang e o medo dos EUA de que os norte-coreanos utilizem seu potencial bélico contra a Coréia do Sul ou contra o Japão. Na verdade, os chineses gostam de ver os americanos preocupados com a questão norte-coreana e, assim, têm um papel de prestígio.

Folha - Embora tenha sido contrária à Guerra do Iraque, a China manteve-se relativamente distante das graves disputas diplomáticas que a precederam. Por quê?
Spence -
Os chineses são bons diplomatas e não pensaram ser necessário tomar uma posição clara contra a maior potência mundial, visto que os EUA eram os maiores defensores do conflito.
A China não tem muito a perder nem a ganhar com a questão iraquiana atualmente. O que interessa aos governantes chineses são as ações militares dos EUA, sua precisão e suas táticas. Cada manobra militar americana é estudada detalhadamente pelos chineses, que querem aprender lições para o futuro, pois poderão enfrentar insurgências similares, sobretudo no oeste de seu território.
O Oriente Médio interessa à China a longo prazo, pois o país terá enormes necessidades de combustível fóssil. Os chineses terão de importar grandes quantidades de petróleo e de gás natural para garantir seu desenvolvimento econômico, e o Iraque será, nesse caso, bastante importante. Assim, Pequim mantém-se distante dos problemas atuais para não "queimar" suas futuras fontes de combustível fóssil. Ademais, não devemos esquecer que a comunidade muçulmana chinesa é grande e poderia não gostar de uma clara posição contrária ao Iraque.

Folha - Nesse contexto, como andam as relações entre a China e os EUA? Alguns especialistas dizem que, antes do 11 de Setembro, havia uma lógica de enfrentamento entre Pequim e Washington. O sr. concorda com isso?
Spence -
Não concordo com essa análise, mas é claro que as relações entre os EUA e a China serão tensas durante o século 21, já que haverá vários pontos de disputa entre os dois países. Como já disse, a Coréia do Norte poderá constituir um problema para ambos, como Taiwan. Ademais, há comunidades chinesas no sudeste da Ásia que poderiam criar um problema para os dois Estados.
O poder naval americano tornou-se mais fraco na região desde que os EUA perderam suas bases fixas nas Filipinas. Os chineses têm mais espaço. Por outro lado, não vejo a China com grande influência sobre a América Latina. Há mais programas de ajuda ao desenvolvimento para a região provenientes de Taiwan que da China. Esta tem mais programas destinados à África.
Os chineses estão mais interessados em uma competição pacífica que em uma situação de conflito com os EUA, pois sabem que um enfrentamento não lhes seria positivo. É verdade que poderíamos dizer que a China projeta ter um Exército bem maior do que necessita internamente e, assim, poderia sentir-se motivada a usá-lo em outros países, mas não creio que esse seja o caso atualmente.

Folha - Quais são as chances de a China democratizar-se a médio ou longo prazos?
Spence -
Elas são boas. Há inúmeras razões para dizer isso, como as transformações pelas quais passa a sociedade chinesa, mas talvez a mais importante seja o número extraordinário de chineses que vivem em países democráticos. Eles mantêm contato com seus familiares que vivem na China e podem acelerar a democratização da sociedade chinesa.
Além disso, há inúmeras áreas da sociedade que não são controladas pelo poder central. No campo, por exemplo, o governo consegue cobrar impostos, mas não consegue impor suas idéias. Outro fator que poderá funcionar como vetor da modernização são os diferentes movimentos religiosos, que ainda são clandestinos, mas ganham muitos adeptos. Não podemos, portanto, descartar a possibilidade de a China democratizar-se durante o século 21.
Na verdade, tudo dependerá do modo de agir do Partido Comunista e de como suas ações serão vistas pela sociedade. Afinal, é impossível conter a vontade de 1,3 bilhão de pessoas por muito tempo. E Hong Kong poderá funcionar como um vetor da modernização. A China comunista evoluiu muito nos últimos 50 anos e evoluirá mais ainda nos próximos 50.



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