São Paulo, quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Com utopias, todo cuidado é pouco

NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mais provável vencedor das eleições presidenciais do Uruguai, em novembro, o esquerdista Tabaré Vazquez, foi cauteloso no congresso de seu partido, a veterana e calejada Frente Ampla. Cita Lula, segundo o semanário "Brecha", de Montevidéu, e diz que o "contato com o governo" pode fazer com que se perca muito dos sonhos". É preciso, avisa Vazquez, "despertar as utopias, recriar a ilusão".
Mas também é necessário "ter senso de realidade". A afirmação de que "desejar o impossível é tão irresponsável e reacionário quanto conformar-se com o que aí está" talvez se torne uma nova máxima das esquerdas latino-americanas. Elas foram curtidas na repressão, na dificuldade de lidar com as urnas, nos bloqueios golpistas e agora são obrigadas a encarar traumas resultantes de ascensão ao poder por meio do voto e da necessidade de ajustar essa realidade a discursos passados.
É um dos temas recorrentes das discussões na Frente Ampla, que procura evitar os mesmos traumas definindo um comportamento por antecipação. Nada de repetir o velho slogan "sejamos realistas, peçamos o impossível". Um senador do time de Vazquez foi mais longe. Declarou que "este é o congresso da vitória, podemos renunciar a tudo, menos à vitória". O todo cuidado é pouco de agora joga com o conhecimento do que se passa com governos que despencaram de um festejado patamar de esperanças e hoje estão às voltas com decepções.
Caso do Equador. Há quatro anos (21 de janeiro de 2000), as organizações indígenas equatorianas "instrumentalizadas" por oficiais jovens da Escola Militar, colocaram o governo constitucional em xeque e acabaram derrubando o presidente Jamil Mauhad. Tratou-se de golpe, em meio a descontentamento popular "sem precedentes". Golpe incompleto. Pressões internas e externas, sobretudo dos EUA, fizeram com que assumisse o vice-presidente Gustavo Noboa.
Mas o "21 de janeiro", com suas legiões de indígenas, maioria da população, em "aliança estratégica" com militares supostamente de esquerda, teve seqüelas com força suficiente para entrar no jogo político tradicional e virar a mesa. Elegeu-se presidente um coronel, Lucio Gutiérrez, que havia assumido a vanguarda militar na frente com as organizações indígenas, motores da sua campanha. Um novo Chávez? No ano passado, Gutiérrez ficou sob suspeita de ter recebido dinheiro do narcotráfico. Foi defendido pessoalmente por Otto Reich, enviado especial de Bush.
Os EUA têm base militar na Amazônia equatoriana. Os laços com indígenas e as esquerdas se romperam. Para sobreviver (são altos os índices dos que querem sua renúncia), Gutiérrez enturmou-se com os partidos tradicionais. Formou um centrão no Congresso. A "nova oposição" agrupou-se em torno da Esquerda Democrática, dos Movimentos Populares Democráticos, do indígena Pachakutik, da Coordenadoria de Movimentos Sociais e de grupos menores. Acusam Gutiérrez de corrupto, neoliberal e fascista.
Em 21 de janeiro, houve manifestação pró-renúncia. O Pachakutik retirou-se. Garante, no entanto, que continuará lutando pela renúncia do presidente e partirá para o confronto logo que arranje "parceiros estratégicos".
Outra trágica decepção é Jean-Bertrand Aristide, do Haiti, ex-padre egresso da teologia da libertação, numa época considerado o portador da redenção dos negros haitianos. Elegeu-se primeiro em 1990, foi golpeado, voltou com cobertura militar americana e está num segundo mandato.
Sitiado em palácio, sustentado por milícias armadas, só se desloca de helicóptero. Os haitianos continuam tão miseráveis como antes, ou mais.


Newton Carlos é jornalista e analista de questões internacionais


Texto Anterior: Disputa: Governadores podem impedir eleição no Irã
Próximo Texto: Oriente Médio: Israel mata 9 palestinos na faixa de Gaza
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.