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MISSÃO NO CARIBE
Para brasileiros que estiveram no país caribenho, o termo "missão de paz" não retrata a realidade
Soldados revelam o horror da vida no Haiti
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
MARLENE BERGAMO
REPÓRTER-FOTOGRÁFICA
A câmera digital registrou 17
minutos de agonia do haitiano.
De uma rua atulhada de lixo em
Bel Air, favela na capital haitiana
considerada reduto de partidários
do ex-presidente Jean-Bertrand
Aristide, sai o homem, tiro no
pescoço. A blusa listrada empapada de sangue, ele agacha ao lado
do blindado brasileiro Urutu, dez
homens a bordo. Pede socorro.
Os soldados sacam suas câmeras
digitais e começam a fotografar.
Ninguém desce para ajudar.
O Urutu não leva pessoal médico, e o homem pode ter sido mandado para servir de isca aos militares da Missão de Estabilização
da ONU no Haiti (na sigla em
francês, Minustah). Pode ser emboscada. "Chama alguém do corpo médico", grita um.
O homem arfa, tira a camisa, rola na rua. Moradores da favela
cercam-no, enquanto os brasileiros tiram mais fotos. Um quarto
de hora depois, ouve-se um ronco
e cessam os movimentos. O homem parece morto. Outro carro
vem atrás, com enfermeiro. O homem é levado ao hospital. Não se
sabe mais dele. O Urutu retoma a
jornada e segue em frente, patrulhando.
A cena está entre os mais de
5.000 arquivos de fotos e filmetes
gravados no laptop do soldado S.,
22, que esteve no Haiti entre dezembro de 2004 e junho de 2005,
como parte do segundo contingente de militares brasileiros enviados na missão de paz da ONU.
Há 20 meses, a ONU mantém
tropas no país para, no jargão militar, "estabilizar" a situação
-desarmar as gangues e os partidários de Aristide, cujo governo
caiu em fevereiro de 2004- e garantir a transição democrática.
As eleições gerais marcadas para o próximo dia 7, depois de quatro adiamentos, podem até dar a
impressão de que esses objetivos
estejam em via de ser cumpridos.
Mas o país está longe da paz.
Segundo o chefe do Escritório
de Comunicações da Minustah,
David Wimhurst, a área de Cité
Soleil, a maior favela de Porto
Príncipe, segue como condomínio fechado por bandidos armados. A polícia da ONU não entra,
os soldados não se arriscam.
Há apenas seis meses, disse
Wimhurst em entrevista telefônica de Porto Príncipe, a favela estava aberta, mas a ação das tropas
brasileiras em Bel Air levou a bandidagem a migrar para os becos e
vielas estreitas de Cité Soleil, onde
um carro não passa.
A rotina de seqüestros na capital haitiana é outro indicador de
violência que segue impávido
-ONGs contam 12 novos casos
por dia apenas em Porto Príncipe.
Na quinta-feira, dois missionários
franceses acompanhados por dois
haitianos foram emboscados perto de Cité Soleil.
Fotos, filmes e carteirinhas
Para entender a rotina dos soldados brasileiros naquela que é a
maior missão de paz já enviada
pelo Brasil ao exterior, a Folha
reuniu oito soldados, idades entre
22 e 25 anos, em um bar e pizzaria
na periferia de São Paulo. Os rapazes chegaram carregando fotos
e filmes de sua estadia de seis meses no Haiti, além das carteiras de
identidade da Minustah. Eles
brincam quando mostram uma
foto do grupo na Cantina de
Bombagay -em francês crioulo,
língua oficial do país, "bom companheiro". A pedido dos entrevistados, as identidades deles não serão divulgadas.
Em duas horas de entrevista, os
rapazes dizem que o nome "missão de paz" dá uma impressão errada sobre o que está acontecendo no Haiti. Um soldado explica o
ponto de vista dos demais: "Até
parece que esse nome é para tranqüilizar as pessoas no Brasil. Na
verdade, não há dia em que as tropas da ONU não matem um haitiano em troca de tiros. Eu mesmo, com certeza, matei dois. Outros, eu não voltei para ver". O
soldado não tem remorso: "Chora
a mãe dele, não a minha", diz.
Os militares contam que cada
vez que um soldado sai em patrulha leva seu fuzil FAL e quatro carregadores de 20 tiros. Como os
confrontos com gangues são rotineiros, é comum os soldados voltarem sem parte da munição. "Só
quando acontece alguma coisa
excepcional é que a gente declara
que matou. Comigo, nunca aconteceu essa tal coisa excepcional.
Quando voltava sem parte da munição, dizia ter trocado tiros, não
atingindo ninguém, e os S-2 [oficiais da inteligência] deixavam
por isso mesmo."
O grupo mostra fotos e mais fotos de cadáveres. Estão jogados
pelas ruas transformadas em lixões a céu aberto de Porto Príncipe. Boa parte está decapitada
(costume dos bandos). Cães aparecem disputando a carniça. Há
uma série de fotos de um cadáver
que primeiro aparece sem cabeça.
Com os dias passando, o corpo
incha ao mesmo tempo que mingua. Cachorros devoram-lhe a
caixa torácica, então uma perna,
um braço, outro e outro e resta a
carcaça. Cabe à Polícia Nacional
Haitiana recolher os corpos. Mas
o trabalho demora às vezes mais
de semana para ser realizado.
A abundância de fotografias decorre do fato de a maioria dos soldados ter câmeras digitais e laptops, comprados nas folgas em
Miami ou na República Dominicana. Eles fotografam e baixam os
arquivos nas suas máquinas.
No laptop de S., a pasta "Fotos
Chocantes" mistura doses diversas de horror. Outra pasta, batizada de "É Nóis", mostra a rotina
dos rapazes. Na foto que registra,
por exemplo, o embarque de soldados em um Boeing KC-137 da
Força Aérea (eles se preparavam
para voltar ao Brasil), vêem-se sete câmeras digitais focadas em
grupos de amigos.
Letalidade
"É muito fácil matar no Haiti,
apesar de o soldado brasileiro ter
um grande respeito pela população civil", diz um. "É que os fuzis
FAL têm um alto índice de letalidade." Enquanto a bala de uma
pistola 9 mm viaja a 1.440 km/h
em média desde o cano até o alvo,
a velocidade média dos projéteis
FAL (com 7,62 mm de diâmetro)
é de 2.880 km/h, o dobro.
Um sargento explica o poder do
FAL: "A bala entra com um movimento de rotação em torno de seu
próprio eixo. Mas, ao encontrar
um obstáculo [um osso, por
exemplo], ela se desestabiliza e
pode sair de lado, arrombando a
carne". Outro soldado completa:
"Às vezes, no meio de um tiroteio,
um cara vindo em nossa direção
pode parecer uma ameaça. Se a
gente pede para ele parar e ele não
pára, o jeito é atirar. Só que, com
os FAL, quase sempre acaba em
morte. É um fuzil de guerra, não
de patrulha urbana como as que
fazemos no Haiti".
Mais do que contar, um dos rapazes mostra o momento mais
apavorante em toda a missão. Para isso, abre o arquivo "pânico",
um filminho que o flagra "histérico", como ele mesmo reconhece,
envergonhado. Ele relata a cena:
"A patrulha brasileira ia dentro de
um Urutu [com duas esquadras
de quatro homens cada], quando
foi cercada [por supostos bandidos haitianos]. Se eles conseguissem arremessar um só coquetel
molotov dentro da viatura, não
sobrava um de nós. E eles iam se
aproximando perigosamente do
carro, e nós não tínhamos mais
munição para responder." O vídeo mostra o soldado berrando
para o sargento que comandava
as duas esquadras: "Vam'bora. Tá
esperando o quê? Vamo morrê.
Vamo morrê. Vamo morrê".
Mulher por comida
De volta ao Brasil, todos os soldados passaram uma semana de
quarentena. Depois de examinados para malária, dengue, tifo,
HIV e distúrbios psicológicos, e
de ser advertidos (de novo) de
que não deveriam divulgar fatos
militares ocorridos no Haiti, um
deles soube ter sido infectado pelo
plasmódio causador da malária.
"Eu fiquei chateado porque a
gente tomava mefloquina duas
vezes por semana no Haiti", lembra o soldado. A mefloquina é
uma droga que reduz, mas não
elimina, os riscos de contrair a
malária. Quando chegou ao Brasil, ele começou a sentir as febres,
os calafrios e as dores associados à
doença, ainda sem cura.
S. diz ter arrumado uma namorada na República Dominicana,
onde passou as férias de 15 dias a
que todo soldado tem direito nos
seis meses em que está na missão.
No Haiti, garante, não manteve
relações sexuais, apesar da rotina
de haitianos indo para o acampamento brasileiro oferecer suas
mulheres em troca de comida.
"A gente não podia nem ter relações sexuais com haitianas [por
causa do risco de Aids e outras
doenças sexualmente transmissíveis] nem dar alimentos para
quem quer que fosse sem autorização da ONU. Se déssemos, no
dia seguinte não haveria um homem, mas o Haiti inteiro oferecendo suas mulheres e pedindo
comida em nossa porta."
No último dia de serviço, os brasileiros romperam a regra e, pelos
vãos da cerca de concertina (fita
farpada com lâminas ultra-afiadas que protege a base), entregaram a famílias haitianas os itens
do café da manhã: sucrilhos, cereais, mel, manteiga de amendoim, creme de chocolate, leite de
caixinha e café. "Era um senhor
café da manhã", lembra um soldado. "Tanto que engordei sete
quilos na missão", diz.
Todos os entrevistados disseram que voltariam ao Haiti. O caso de um rapaz que voltou com
saldo de R$ 10 mil no banco, um
laptop, uma câmera digital Sony
Cybershot de 5,2 megapixels e
ainda com fama de herói no bairro explica o desejo coletivo.
A poupança cresceu graças à
complementação do soldo.
Quando em missão de paz, um
soldado que no Brasil ganha pouco mais de R$ 500 por mês passa a
receber quase R$ 2.700. "Depois
tem outra. Se a saudade aperta, o
rum haitiano é bom demais. Anota aí o nome: é Barbancourt. Rum
Barbancourt, um santo remédio
contra a saudade", diz S.
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