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São Paulo, sábado, 29 de março de 2003

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Fita mostra realidade devastadora de Basra

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT", EM BAGDÁ

Dois soldados britânicos jazem mortos numa estrada de Basra. Uma garotinha iraquiana -vítima de um ataque anglo-americano- é trazida ao hospital com seus intestinos saindo pela barriga. Uma mulher terrivelmente ferida grita de agonia enquanto os médicos tentam tirar seu vestido.
Um general iraquiano, cercado de soldados armados, anuncia no centro de Basra que a segunda maior cidade do país permanece nas mãos dos iraquianos. A fita não-editada da Al-Jazeera -gravada ao longo das últimas 36 horas e recém-chegada a Bagdá- é crua, dolorosa, devastadora.
Também é uma prova de que Basra -que teria sido "capturada" e "assegurada" por tropas britânicas na semana passada- está, na verdade, sob controle das forças de Saddam Hussein.
Apesar de alegações de oficiais britânicos de que alguma forma de levante teria acontecido em Basra, carros e ônibus continuam a circular pelas ruas enquanto os iraquianos fazem fila para pegar botijões de gás descarregados por um caminhão do governo.
Uma parte memorável da fita mostra bolas de fogo sobre o oeste da cidade e a explosão das granadas supostamente britânicas. A curta sequência dos soldados britânicos mortos -sobre as quais Tony Blair expressou tanto horror- tem pouca diferença das dezenas de sequências de soldados iraquianos mortos mostrados na TV britânica ao longo dos últimos 12 anos, que nunca provocaram condenação do premiê.
Muito mais terrível que as imagens dos soldados, no entanto, é a fita gravada no maior hospital de Basra que mostra vítimas do bombardeio anglo-americano sendo trazidas às salas de operação, se contorcendo de dor.
Um homem de meia-idade vem de pijamas, ensopado de sangue da cabeça aos pés. Uma garotinha de talvez quatro anos é trazida numa maca, com os intestinos saindo pela barriga. Um médico lava os intestinos da menina e faz um curativo antes da cirurgia. Em outra sequência, uma trilha de sangue leva ao local de impacto de uma granada, supostamente britânica. Ao lado da cratera há um par de sandálias de plástico.
As fitas da Al-Jazeera, a maioria inéditas, são a primeira prova vívida de que Basra continua totalmente fora do controle britânico. Não só uma das principais estradas da cidade para Bagdá continua aberta -foi assim que as três fitas chegaram à capital-, como o general Khaled Hatem é entrevistado numa rua de Basra, cercado por centenas de soldados uniformizados, dizendo ao repórter da Al-Jazeera que seus homens "nunca" se renderão ao inimigo.
O correspondente da Al-Jazeera em Basra, Mohamed al-Abdullah, deve ser o jornalista mais corajoso hoje no Iraque. Na sequência das três fitas, ele pode ser visto entrevistando famílias sob fogo e relatando calmamente o bombardeio da artilharia britânica.
Cinco dias atrás, o governo do Iraque disse que 30 civis haviam sido mortos em Basra e outros 63 estavam feridos. Ontem, que mais de 4.000 civis foram feridos no Iraque desde o início da guerra e mais de 350 foram mortos.
Mas a fita de Abdullah mostra pelo menos sete corpos trazidos ao morgue do hospital de Basra nas últimas 36 horas. Um, com a cabeça ainda vertendo sangue, foi identificado como um correspondente árabe de uma agência de notícias ocidental.
Outras cenas angustiantes mostram o corpo parcialmente decapitado de uma garotinha, com o lenço ainda em volta do pescoço. Outra menina jazia numa maca sem o cérebro e sem a orelha esquerda. Outra criança morta teve os pés arrancados. Não havia nenhuma indicação sobre se munição americana ou britânica tinha matado essas crianças.
As fitas não indicam baixas militares iraquianas. Mas, numa época em que autoridades iraquianas não permitem a jornalistas ocidentais visitar Basra, isso é a coisa mais próxima de uma evidência independente de que existe resistência na cidade e da falha dos britânicos em capturá-la.
Há também uma sequência que mostra dois homens, ambos negros, que, segundo os iraquianos, são prisioneiros de guerra americanos. Ninguém pergunta nada aos homens, que parecem nervosos e olham para a câmera e para os soldados iraquianos que se amontoam atrás dela.
As fitas não-editadas são a evidência de que os porta-vozes anglo-americanos não têm dito a verdade sobre Basra. E, no fim das contas, isso é muito mais devastador para as forças invasoras do que a visão de corpos de dois soldados britânicos ou -uma vez que as vidas iraquianas são tão sagradas quanto as britânicas- das crianças iraquianas mortas.


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