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MEMÓRIA
Guerra do Vietnã, 30, ainda assusta e deixa lições
ROBERTO DIAS
DE NOVA YORK
"Enquanto estas linhas estão
sendo escritas, a América se encontra novamente em guerra
-desta vez sem nenhuma ambiguidade sobre a natureza da
ameaça. Mesmo que a história
não se repita diretamente, existe
pelo menos uma lição para ser
aprendida da tragédia descrita
nestas páginas: a América nunca
mais deve permitir que seus compromissos sejam superados por
suas divisões."
O autor do parágrafo é Henry
Kissinger, e ele aparece em seu recém-lançado livro "Ending the
Vietnam War" (terminando a
Guerra do Vietnã), um título adequadamente ambíguo. Por um lado, indica que a obra relata as negociações que colocaram fim à
guerra, comandadas por ele, então secretário de Estado dos EUA.
Por outro, mostra como o episódio representa uma discussão ainda não acabada.
Há exatos 30 anos chegou ao
fim a aventura militar dos EUA
no Vietnã. Em 29 de março de
1973, as últimas tropas americanas deixaram o país e encerraram
oficialmente a participação no
conflito. Sobrou apenas o pessoal
responsável pela guarnição da
embaixada americana -que seria resgatado dois anos depois, na
famosa retirada de Saigon.
Há pelo menos uma grande
consequência que a sombra daquele 29 de março na Ásia projeta
sobre o dia de hoje no deserto iraquiano: a profissionalização das
Forças Armadas americanas.
Foi depois da Guerra do Vietnã
que os EUA abandonaram o recrutamento obrigatório para suas
fileiras militares e passaram a trabalhar apenas com soldados voluntários, pagos para combater.
Tal opção é ainda hoje motivo
de discussão. No começo deste
ano, por exemplo, um deputado
americano sugeriu que se voltasse
ao sistema de recrutamento. Ao
que o secretário da Defesa dos
EUA, Donald Rumsfeld, respondeu dizendo que os recrutas não
haviam adicionado "nenhum valor, nenhuma vantagem às Forças
Armadas americanas em qualquer época".
O presidente da associação
Vietnam Veterans of America,
Thomas Corey, considerou-se insultado.
"O secretário deveria saber que
a Guerra do Vietnã não poderia
ter continuado por dez anos sem
o serviço de americanos que aceitaram sua obrigação militar como
cidadãos deste país."
Além da profissionalização das
tropas, o Vietnã serve como parâmetro para outras discussões à
mesa dos americanos agora.
Por exemplo: a importância de
manter o apoio da opinião pública mesmo depois que os corpos
dos soldados começam a ser entregues aos seus pais.
Nesse quesito, aliás, a Guerra do
Vietnã foi uma carnificina, se
comparada ao que acontece hoje:
no final do governo de Lyndon
Johnson, morriam em média 40
americanos por dia, número não
atingido ainda em dez dias de
conflito no Iraque, ao menos segundo os anúncios oficiais.
Há ainda a questão sobre quanto tempo esperar por uma vitória
militar e, depois, quanto tempo
manter as tropas longe de casa,
ocupando o país ("Não temos a
intenção de ficar lá por muito
tempo", repetia ainda ontem o secretário Rumsfeld).
O Vietnã também foi campo de
fertilização da "teoria do dominó", ancestral da tese agora defendida pela administração Bush.
Como relata Kissinger em seu livro, a teoria nasceu em um documento datado de fevereiro de
1950, quatro meses antes do início
da Guerra da Coréia.
"Predizia que, se a Indochina
caísse, Mianmar e Tailândia cairiam em seguida e que 'o balanço
do Sudeste Asiático estaria em
grave prejuízo'", escreve o ex-secretário.
Hoje, a administração Bush inverte a equação: afirma que, se
Saddam cair, todo o Oriente Médio poderá ser varrido por uma
onda democrática.
Kissinger avança ainda numa
outra análise sobre a teoria daquela guerra, e de novo suas palavras encontram ressonância neste
conflito. Combater no Vietnã, diz
ele, tinha "a menos óbvia correlação com as batalhas anteriores em
relação aos conceitos de segurança nacional".
Fantasma
Com todos os problemas, o governo americano foi à guerra. E,
30 anos depois, a documentação
da CIA cataloga o Vietnã da seguinte maneira: "Tipo de governo: Estado comunista".
Se não foi boa para os EUA,
aquela guerra também não ajudou muito o Vietnã.
O que o Iraque agora diz temer
-que os EUA arrasem seu
país- aconteceu no Vietnã. Depois da guerra, pouco sobrou do
país.
Ainda hoje, mesmo rodeado
por vizinhos que deram o salto do
desenvolvimento, o Vietnã tateia
a parede para escalar uma recuperação: é apenas o 109º colocado
em desenvolvimento humano no
mundo, segundo o ranking do índice IDH, da ONU.
Entre os americanos, a fixação
com o que aconteceu no Vietnã é
recorrente. Um rápido exercício
ajuda a dimensioná-la: na Amazon, mais famosa livraria virtual
do mundo, uma pesquisa com a
palavra "Vietnã" encontra 4.686
referências; para o termo "Iraque", são 1.284.
Mas o momento de se livrar
dessas reminiscências está próximo, opina Michael Peters, 56, vice-presidente executivo do Council on Foreign Affairs. "Assim que
essa geração do Vietnã morrer, isso vai acabar junto", diz Peters, ele
mesmo um ex-combatente no
Vietnã -esteve lá de 1969 a 1970.
"A geração do Vietnã já não é
mais dominante no governo americano. O principal nome é o Colin Powell, que lutou no Vietnã.
Condoleezza Rice não é parte daquela geração. Rumsfeld, Cheney,
o próprio Bush, eles não lidaram
diretamente com a guerra. Quando Powell for embora, acabou para essa geração", afirma.
Do lado de fora do governo, o
movimento pacifista também enxerga mudanças grandes nesses
30 anos. "O que é impressionante,
nesta guerra, é a velocidade com
que se formou a polarização, foi
muito mais rápido do que na
Guerra do Vietnã", diz Steve Aulc,
56, coordenador da United for
Peace and Justice e veterano militante das manifestações pacifistas. "Na época de Nixon [presidente dos EUA ao final da Guerra
do Vietnã], as pessoa tinham um
grande um senso prático. Agora
há uma parte muito importante
de ideologia", opina.
Era o que havia, aliás, por trás
da atitude americana no Vietnã,
conforme define Kissinger ao tentar explicar como o país se meteu
na guerra: "Tudo começou com
grandes aspirações".
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