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ARTIGO
Depois da queda de Bagdá, futuro sombrio
DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Bush significa perfídia, para
os xiitas do Iraque meridional. No fim da primeira Guerra do
Golfo, em 1991, George Bush, pai
do atual presidente americano,
conclamou os iraquianos a tomarem o futuro em suas mãos. Os
xiitas de Basra e Nassiriah se rebelaram contra Saddam Hussein,
que enviou para o sul tropas da
Guarda Republicana. Os blindados e carros de combate passaram
a poucos quilômetros das forças
americanas, entraram nas cidades
xiitas e promoveram uma carnificina. Há indícios de que Washington tenha dado sinal verde, previamente, para o deslocamento
das forças de Saddam Hussein.
O desprezo pela história produz
erros estratégicos colossais. Os
planejadores da atual invasão do
Iraque esperavam uma calorosa
recepção da população xiita do
sul. Repórteres e câmeras da CNN
e da Fox News, incorporados às
unidades militares, tinham a missão de difundir as cenas da chegada gloriosa das "forças de libertação". Mas os xiitas lembram muito bem da traição recente, que vitimou seus pais, irmãos e familiares. Odeiam Saddam, mas não
acreditam no "pequeno Bush".
Por isso, permanecem à margem dos combates que desgastam
a retaguarda da coalizão anglo-americana. A revolta de Basra,
anunciada na terça pelos britânicos, parece ter sido mais uma falsa
notícia plantada pela central de
desinformação ocidental.
Há 12 anos, Bush decidiu conservar Saddam Hussein no poder
para manter a coesão da coalizão
internacional, evitar uma confrontação com o mundo árabe e,
sobretudo, garantir a integridade
territorial do Iraque. A rebelião
xiita servia para enfraquecer o regime e fornecer pretexto para a
declaração da zona de exclusão
aérea no Iraque meridional. Mas
os xiitas não deveriam tomar o
poder pois isso significaria o deslizamento do Iraque para a esfera
de influência do Irã.
Os xiitas do sul representam
55% da população do Iraque. Os
curdos do norte são quase 20% e
sua área de povoamento se estende, além das fronteiras, pela Turquia, Irã e Síria. No fim da guerra
de 1991, os curdos também se ergueram contra Saddam Hussein
mas as forças enviadas por Bagdá
empurraram os insurgentes para
as montanhas. Uma segunda zona de exclusão aérea evitou um
massacre similar ao dos xiitas.
No Afeganistão, há um ano, o
plano de guerra americano combinou a hegemonia aérea com
tropas tribais afegãs, apoiadas por
forças especiais em solo. O "modelo afegão" não é utilizado no
Iraque. Apesar da presença de
combatentes curdos relativamente treinados, os planejadores americanos decidiram não armar ou
apoiar uma força curda que poderia assumir o controle do Iraque
setentrional. O motivo encontra-se na geopolítica regional.
Os curdos almejam formar um
Curdistão independente, redesenhando as fronteiras regionais.
No Iraque, os partidos curdos reivindicam, no mínimo, a formação de um Estado federal com
uma região autônoma curda.
A Turquia, aliada americana da
Otan, enxerga um Iraque federal
como a semente da revolta dos
seus 14 milhões de curdos, que representam 20% da população e a
maioria dos habitantes do sudeste
do país.
Dezenas de milhares de tropas
turcas ingressaram no Iraque, estabelecendo uma zona-tampão
na fronteira. Washington mobilizou a diplomacia e as forças especiais para evitar um conflito entre
tropas turcas e milícias curdas no
Iraque setentrional.
Bush, Powell e Rumsfeld prometeram a invenção de um Iraque democrático, depois da
"guerra de libertação". Vão criar
um protetorado militar, sob comando de Washington, talvez decorado por um governo fantoche
de civis iraquianos.
A remoção de Saddam Hussein
eliminará o aparelho clânico e ditatorial que assegurou a unidade
do país. O lugar desse aparelho terá de ser ocupado por poderosas
forças militares estrangeiras, a fim
de impedir que a maioria xiita tome o poder e que a minoria curda
estabeleça o embrião do Curdistão.
A guerra, mesmo fora da rota
prevista, não é o problema central
de Bush. Depois dela, durante
anos e anos, numerosas tropas
devem permanecer estacionadas
no Iraque como força de ocupação. Essa presença, de tipo neocolonial, incitará o ódio das ruas
contra os governos árabes e muçulmanos alinhados a Washington. Ela será a bandeira de recrutamento de Osama bin Laden ou
seus sucessores.
Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela USP e editor de "Mundo
Geografia e Política Internacional"
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