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São Paulo, sábado, 29 de março de 2003

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ARTIGO

Depois da queda de Bagdá, futuro sombrio

DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Bush significa perfídia, para os xiitas do Iraque meridional. No fim da primeira Guerra do Golfo, em 1991, George Bush, pai do atual presidente americano, conclamou os iraquianos a tomarem o futuro em suas mãos. Os xiitas de Basra e Nassiriah se rebelaram contra Saddam Hussein, que enviou para o sul tropas da Guarda Republicana. Os blindados e carros de combate passaram a poucos quilômetros das forças americanas, entraram nas cidades xiitas e promoveram uma carnificina. Há indícios de que Washington tenha dado sinal verde, previamente, para o deslocamento das forças de Saddam Hussein.
O desprezo pela história produz erros estratégicos colossais. Os planejadores da atual invasão do Iraque esperavam uma calorosa recepção da população xiita do sul. Repórteres e câmeras da CNN e da Fox News, incorporados às unidades militares, tinham a missão de difundir as cenas da chegada gloriosa das "forças de libertação". Mas os xiitas lembram muito bem da traição recente, que vitimou seus pais, irmãos e familiares. Odeiam Saddam, mas não acreditam no "pequeno Bush".
Por isso, permanecem à margem dos combates que desgastam a retaguarda da coalizão anglo-americana. A revolta de Basra, anunciada na terça pelos britânicos, parece ter sido mais uma falsa notícia plantada pela central de desinformação ocidental.
Há 12 anos, Bush decidiu conservar Saddam Hussein no poder para manter a coesão da coalizão internacional, evitar uma confrontação com o mundo árabe e, sobretudo, garantir a integridade territorial do Iraque. A rebelião xiita servia para enfraquecer o regime e fornecer pretexto para a declaração da zona de exclusão aérea no Iraque meridional. Mas os xiitas não deveriam tomar o poder pois isso significaria o deslizamento do Iraque para a esfera de influência do Irã.
Os xiitas do sul representam 55% da população do Iraque. Os curdos do norte são quase 20% e sua área de povoamento se estende, além das fronteiras, pela Turquia, Irã e Síria. No fim da guerra de 1991, os curdos também se ergueram contra Saddam Hussein mas as forças enviadas por Bagdá empurraram os insurgentes para as montanhas. Uma segunda zona de exclusão aérea evitou um massacre similar ao dos xiitas.
No Afeganistão, há um ano, o plano de guerra americano combinou a hegemonia aérea com tropas tribais afegãs, apoiadas por forças especiais em solo. O "modelo afegão" não é utilizado no Iraque. Apesar da presença de combatentes curdos relativamente treinados, os planejadores americanos decidiram não armar ou apoiar uma força curda que poderia assumir o controle do Iraque setentrional. O motivo encontra-se na geopolítica regional.
Os curdos almejam formar um Curdistão independente, redesenhando as fronteiras regionais. No Iraque, os partidos curdos reivindicam, no mínimo, a formação de um Estado federal com uma região autônoma curda.
A Turquia, aliada americana da Otan, enxerga um Iraque federal como a semente da revolta dos seus 14 milhões de curdos, que representam 20% da população e a maioria dos habitantes do sudeste do país.
Dezenas de milhares de tropas turcas ingressaram no Iraque, estabelecendo uma zona-tampão na fronteira. Washington mobilizou a diplomacia e as forças especiais para evitar um conflito entre tropas turcas e milícias curdas no Iraque setentrional.
Bush, Powell e Rumsfeld prometeram a invenção de um Iraque democrático, depois da "guerra de libertação". Vão criar um protetorado militar, sob comando de Washington, talvez decorado por um governo fantoche de civis iraquianos.
A remoção de Saddam Hussein eliminará o aparelho clânico e ditatorial que assegurou a unidade do país. O lugar desse aparelho terá de ser ocupado por poderosas forças militares estrangeiras, a fim de impedir que a maioria xiita tome o poder e que a minoria curda estabeleça o embrião do Curdistão.
A guerra, mesmo fora da rota prevista, não é o problema central de Bush. Depois dela, durante anos e anos, numerosas tropas devem permanecer estacionadas no Iraque como força de ocupação. Essa presença, de tipo neocolonial, incitará o ódio das ruas contra os governos árabes e muçulmanos alinhados a Washington. Ela será a bandeira de recrutamento de Osama bin Laden ou seus sucessores.


Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela USP e editor de "Mundo Geografia e Política Internacional"


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