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IRAQUE SOB TUTELA
Problema é que o governo iraquiano precisa parecer independente ao mesmo tempo em que necessita dos EUA
Insurgentes ditam agenda da "soberania"
ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"
Em última análise, então, a data
foi marcada pelos inimigos dos
EUA. A entrega da suposta ""soberania plena" foi adiantada secretamente para que o ex-agente de
inteligência da CIA que hoje é
"primeiro-ministro" do Iraque
pudesse evitar outra ofensiva sangrenta dos inimigos da América.
A data que supostamente seria a
mais importante da história moderna do Iraque foi mudada, como se fosse uma simples festa de
aniversário, porque há o risco de
chover na quarta-feira.
"Deplorável" é a palavra que
vem à mente. Lá estávamos nós,
entregando a "soberania plena" à
população do Iraque -"plena", é
claro, desde que esqueçamos os
160 mil soldados estrangeiros que,
aparentemente, o primeiro-ministro Iyad Allawi pediu que permanecessem no país, "plena" se
esquecermos os 3.000 diplomatas
norte-americanos que vão constituir em Bagdá a maior embaixada
dos Estados Unidos no mundo
-sem sequer termos comunicado a mudança de data a essa mesma população.
Poucos -exceto, é claro, pelos
iraquianos- compreenderam o
paradoxo mais cruel encerrado
no caso todo. Pois foi o novo
chanceler -não deveríamos, talvez, colocar também o nome do
cargo dele entre aspas?- quem
optou por vazar o "adiantamento" da soberania do Iraque à cúpula da Otan na Turquia. Assim,
essa data nova e inusitada na história moderna do Iraque foi
anunciada não em Bagdá, mas na
capital do antigo Império Otomano, que, no passado, dominou o
Iraque. Nem Alice no País das
Maravilhas poderia ter feito melhor. A ironia é feroz.
O poder foi ritualmente entregue em documentos legais. O novo governo tomou posse, jurando
sobre o Alcorão. O procônsul
americano, Paul Bremer, apertou
formalmente a mão de Allawi e
embarcou em seu avião C130 para
casa, protegido por homens das
forças especiais de óculos escuros.
Já ficou claro que Allawi estuda
impor a lei marcial, o "sine qua
non" de toda ditadura árabe
-agora sendo imposto a um Estado árabe por um Exército ocidental liderado por um governo
declaradamente cristão. Quem foi
o último a impor a lei marcial aos
iraquianos? Não foi Saddam?
Não, Allawi e seus amigos não
são Saddanzinhos. Ele quase foi
assassinado por Saddam até que
-segundo ele mesmo admitiu-
passou a receber as libras dos serviços secretos da rainha, os dólares da CIA e o dinheiro de 12 outras agências de inteligência.
Ontem, Allawi falou em um "dia
histórico". Para o novo premiê, os
iraquianos vão começar a desfrutar de "soberania plena". Aqueles
entre nós que colocamos aspas
em volta de "libertação" em 2003
agiremos bem ao fazer o mesmo
com "soberania", agora. Aliás, aspear termos virou parte regular
do trabalho do jornalista que escreve sobre o Oriente Médio.
Possivelmente o mais notável de
tudo tenha sido a exigência formulada por Allawi de que "mercenários vindos ao Iraque desde
países estrangeiros" devam deixar o país. Existem, sim, 80 mil
"mercenários" ocidentais no Iraque, a maioria vestindo roupas
ocidentais. Mas, é claro, Allawi
não se referia a eles. E é aí que está
o problema. É preciso chegar a
hora em que deixaremos os clichês de lado. A Al Qaeda não possui uma sucursal original no Iraque. Não foram iraquianos os que
planejaram o 11 de Setembro.
Mas não precisamos nos preocupar. O novo premiê iraquiano
não vai demorar a decretar a lei
marcial, e, assim, poderemos todos aguardar um pedido por mais
tropas americanas, "atendendo a
pedido formal do governo provincial". Podemos aguardar a primeira expulsão de jornalistas e o
adiamento das eleições.
Muitas promessas foram formuladas ontem de julgamento de
Saddam Hussein e seus colegas,
embora (o que não chega a surpreender) advogados iraquianos
achassem que há outras e mais urgentes questões. Paul Bremer
aboliu a pena de morte no Iraque,
mas Allawi parece querer reintroduzi-la. Indagado se Saddam poderia ser executado, Allawi disse
que "isso também é algo que está
sendo discutido no sistema judicial do Iraque". Mas afirmou ser a
favor da pena de morte.
Quando apareceu diante das câmeras ontem, o novo primeiro-ministro do Iraque usou palavras
que poderiam ter sido proferidas
por George W. Bush. Ele avisou às
"forças do terror": ""Não vamos
esquecer quem ficou do nosso lado e quem se posicionou contra
nós nesta crise".
O verdadeiro problema de Allawi é que ele precisa ser um líder
independente e, ao mesmo tempo, confiar em uma força estrangeira, ocidental e cristã para
apoiar seu governo. Ele não pode
gerar segurança sem a assistência
de uma força estrangeira. Mas ele
não tem controle sobre essa força.
Não pode ordenar a retirada dos
americanos. É o xis da questão.
Se Allawi realmente pretende liderar, a maior demonstração que
poderia fazer seria exigir a retirada imediata de todas as forças estrangeiras. Em questão de horas
ele se transformaria em herói no
Iraque. Os americanos estariam
acabados. Mas será que Allawi
possui a inteligência necessária
para se dar conta de que esse passo último poderia ser sua salvação? E quem, neste momento crítico e sangrento, poderá saber? Já
se sabe de casos anteriores em que
sátrapas dos EUA viraram traidores. No entanto a equação dolorosa que se vê em Bagdá hoje consiste no fato de que Alawi depende
justamente do Exército cuja retirada seria necessária para comprovar sua própria credibilidade.
As forças de ocupação ocidentais deixaram para trás toda uma
gama de legislação dúbia. Boa
parte permite que empresas ocidentais suguem os lucros da reconstrução, uma questão na qual
os iraquianos não tiveram escolha, e muitas pessoas no país não
têm interesse algum em levar
adiante a vigência das leis decretadas por Bremer. Por exemplo, é
pouco provável que alguém passe
um mês na cadeia por dirigir sem
carteira de habilitação. Mas por
que empresas estrangeiras deveriam ter imunidade legal? Quando um mercenário britânico atira
num iraquiano, ele não pode ser
submetido a um tribunal local.
No entanto Allawi depende desses mesmos mercenários. E é por
isso, infelizmente e inevitavelmente, que ele e seu governo vão
fracassar. A insurgência já ganhou vida própria. Se ela conseguir manter uma luta pela independência nas áreas sunitas a
norte e a oeste de Bagdá, os nacionalistas sunitas poderão dizer que
têm o direito de formar o primeiro governo iraquiano independente e pós-americano.
Tradução de Clara Allain
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