São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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Nova geração de Timor não fala português

DO ENVIADO ESPECIAL

Gil Horácio Boavida, 23, nasceu em Timor após 1975 -é, portanto, indonésio. Não fala português. Comunicamo-nos em inglês.
No referendo sobre a independência, em 1999, ele era estudante em Java, Indonésia. Com a independência, perdeu o passaporte e voltou para Timor, sem universidade e sem trabalho.
Unhas compridas de guitarrista, anéis nas mãos e nos pés, tatuagem no peito, Gil é "fashion". Pergunto-lhe se é a favor da independência. Diz que sim -acrescenta que "o Exército indonésio é ruim, mas os indonésios são legais".
A Indonésia é sua maior referência cultural. Em Timor, ele não tem como estudar. Gostaria de trabalhar na Untaet (administração da ONU). Lembro que a Untaet um dia irá embora. Ele diz que é o que ele quer: ir embora.
Gil me acompanha na viagem de carro a Laleia (a cerca de 80 km de Dili), "pelo prazer de falar inglês". Em Manatuto (a cerca de 60 km de Dili), paro para ler um grafite da resistência contra a Indonésia. Ele não entende o texto, mas sabe que é em português, língua com a qual ele aparentemente não compartilha muita coisa.
A escrita em Timor é um divisor social (o analfabetismo está acima de 50%). E a língua é um divisor entre gerações. Gil fala o tetum (como quase todos os timorenses do leste), foi escolarizado em bahasa indonésio e aprendeu inglês.
O tetum é uma língua oral que começou a ser transcrita pela Igreja Católica quando quis oficiar na língua vernacular. Uma segunda língua oficial, com tradição escrita, era necessária. Xanana Gusmão, líder da independência, decidiu que seria o português.
É fácil entender a razão. Durante a dominação indonésia, o português foi um símbolo. O major da PM fluminense Lima Castro, membro da Civipol (a polícia civil da ONU), conta que, um dia, um colega lhe pediu que verificasse se um candidato a policial falava português. O major teve de insistir para que o homem falasse a língua de Camões: "Há 25 anos que sou proibido de falar português", disse ele. Passou no teste.
A anedota comove os hoje cinquentões que cresceram em Timor, colônia portuguesa, e, durante a ocupação indonésia, se exilaram ou lutaram na guerrilha.
A geração seguinte compartilha a paixão política dos mais velhos, mas, além do português, já fala inglês. Abé Barreto, 34, falou português até os 10. Depois de 1975, continuou sua educação em bahasa indonésio e foi estudar em Java. Foi escolhido para um intercâmbio no Canadá -onde morava, em 1991, quando soube do massacre no cemitério de Santa Cruz, marco na luta independentista, e decidiu ficar na América.
Mais tarde, foi para Portugal. Voltou a Timor este ano, convidado a trabalhar com a porta-voz da Untaet. Além de suas tarefas jornalísticas, ele procura as tímidas manifestações de uma literatura timorense -seja em tetum, bahasa, português ou inglês-, que ele considera crucial para o futuro. Ele me levou para conhecer a Casa Xanana Gusmão, talvez o núcleo de uma futura biblioteca. Lá, encontrei de novo Gil Horácio Boavida. Pensei que ele tivesse se convertido à causa da independência e ao português. Nada disso: estava lá para assistir à MTV na única televisão pública de Dili. Na despedida, cantou "Aquarela do Brasil" e perguntou (em inglês): "Posso ir ao Brasil com você?"
Gil é um exemplo da geração que nasceu e chegou à maturidade no Timor indonésio. E os mais jovens ainda? Num restaurante de Dili, foi programada a projeção de um documentário sobre as milícias locais. Havia cerca de 15 pessoas -nenhum timorense, salvo duas meninas de 15 anos que se divertiam cantando rock e blues.
Repetiram várias vezes "Mississipi Rolling On". A globalização cultural é tão inevitável quanto o correr do rio do qual fala a música. Antes de serem interrompidas pela projeção (a que não assistiram), elas lançaram um dueto, em inglês: "Acordo de manhã e grito até estourar os pulmões: o que está acontecendo?". Foi o que me perguntei também. (CC)


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