São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO
Apesar da falta de infra-estrutura básica, quatro missionárias buscam alfabetizar e cuidar da saúde em vilarejos timorenses
Brasileiras atuam sem água encanada e luz

DO ENVIADO ESPECIAL

Laleia é um vilarejo entre Dili e Baucau, na costa norte de Timor. Fui até lá para encontrar "as irmãs brasileiras". Foi assim que me falaram delas, em São Paulo, em Sydney e em Dili. São três religiosas -Maria Beatriz Mohr, Terezinha Kunen e Lourdes Borelli- e uma laica -Ana Maria Pinheiro.
Chegaram há cinco meses, enviadas pela Igreja Católica do Brasil, e decidiram trabalhar juntas por algum tempo, familiarizando-se com Timor e aprendendo o tetum, antes de se espalhar pelo território.
As condições são duras: não há água encanada e luz elétrica (não há sequer um gerador funcionando). As comunicações são quase impossíveis: não há telefonia, fixa ou móvel, nem correio.
A correspondência só pode chegar pelas agências que têm canais próprios: a ONU, a embaixada ou o bispado. O abastecimento básico (como alimentos e produtos de limpeza) é precário. No começo de outubro, a missão recebeu um carro para poder atingir comunidades e casas isoladas e também para que as irmãs possam, às vezes, se abastecer na capital.
A missão das irmãs não é catequizar as populações: os timorenses são fiéis e devotos. Beijam a mão de padres e madres e abarrotam as igrejas nas festas.
Essa religiosidade sincera e formalmente estrita impede que as irmãs possam desfrutar a única diversão que Laleia poderia oferecer: o banho de mar. A população nunca aceitaria as missionárias de maiô na água.
Elas visitam vilas identificando casos que precisem de assistência médica. Monitoram a administração de remédios e o progresso das curas e das doenças. Ensinam higiene e prevenção. Alfabetizam e ensinam: em poucos meses, elas montaram duas salas de aula em Laleia.
Junto com saúde básica e educação, elas trazem o que talvez seja ainda mais importante: a mensagem de que alguém se importa e veio ajudar. Levei para as irmãs cartas e mensagens. Trouxe de volta um recado. Manuel Ximenes, timorense, presenciou minha chegada e minha conversa com elas. No fim, me pediu solenemente que levasse de volta um agradecimento ao povo do Brasil, por ter mandado as irmãs.
Mas elas não são a única presença do Brasil em Timor.
A embaixada será efetiva quando Timor passar a existir como país independente, em 2002. Mas, pelo escritório já aberto, com o embaixador Kiwal de Oliveira, o governo brasileiro está organizando um projeto do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) para formar técnicos profissionais, um trabalho de alfabetização e uma campanha de vacinação contra a poliomielite.
Além disso, o cargo de representante especial do secretário-geral da ONU, que é, de fato, o governador de Timor até as eleições, é ocupado por um brasileiro, Sérgio Vieira de Mello. Ele é particularmente apreciado por promover a integração de timorenses no governo provisório. São hoje cinco ministros timorenses e quatro internacionais.
Há 13 policiais (que integram a Civipol -a polícia civil da ONU) e 12 observadores militares brasileiros.
E também os homens do 2º Batalhão da Polícia do Exército, de Osasco (Grande São Paulo). São 69, com um capitão-médico que -a saúde da tropa sendo boa, como ele relatou- atende sobretudo a população local. São divididos em dois destacamentos: um pelotão de 19 homens, junto com um regimento australiano, guarda a fronteira com Timor Oeste (Indonésia). Os outros, em Dili, escoltam comboios e, sobretudo, garantem a segurança pessoal das lideranças timorenses, em particular a de Xanana Gusmão e José Ramos-Horta, líderes da independência, a pedido dos próprios.
Os soldados brasileiros são eficientes e perfeitamente treinados para a tarefa. Mas o que os torna especiais para os timorenses? O que leva as autoridades a preferi-los? Não é só uma facilidade linguística (que os portugueses também ofereceriam). Para encontrar uma resposta, observei os policiais e os soldados brasileiros e tentei entender o segredo de sua popularidade.
Ao encontrar uma criança nas ruas de Dili, os brasileiros são os únicos que, em vez do tradicional e sinistro "hello, mister!", ganham um "Brasil!" e as primeiras notas de "Aquarela do Brasil".
O fato é que todos lidam com a pobreza e o eventual desamparo com a naturalidade de quem já conhece essas pragas e sabe perceber, atrás delas, a cara de uma humanidade parecida com a nossa.
Talvez por isso o Brasil tenha destaque no coração dos timorenses. E seja, por uma vez, motivo de orgulho. (CONTARDO CALLIGARIS)


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