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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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DIÁRIO DE BAGDÁ

Ataque a centro comercial de Bagdá deixa 58 mortos e 49 feridos, de acordo com autoridades iraquianas

No paupérrimo mercado de Al Shola, meninos descalços tentam desviar das marcas de sangue e de restos humanos

Saddam Hussein, 20, é ferido por explosão

Juca Varella/Folha Imagem
O estudante Saddam Hussein, de 20 anos, recebe atendimento em hospital após ser atingido por explosão de míssil no centro comercial Al Tadji


Saddam Hussein foi atingido anteontem à noite por um míssil. Com a explosão do armamento, perdeu parte do braço esquerdo, cujo resto foi amputado ao chegar ao hospital mais próximo.
Agora, está sentado na cama da enfermaria com outros sete pacientes enquanto olha o repórter e o fotógrafo olharem para ele. Onde antes havia o braço pode-se perceber o desenho de um coto, que tenta empurrar um pouco para fora os laços malfeitos das ataduras e dos curativos.
A seu lado, um homem aparentando uns 40 anos, com o rosto completamente queimado, se contorce de dor enquanto duas enfermeiras amputam parte dos dedos de sua mão esquerda, também destruída pela explosão de anteontem.
Os restos arrancados com instrumentos cirúrgicos caem numa bacia de água, já toda tomada pelo sangue. Saddam Hussein mantém o olhar quase parado ao observar calmamente seu vizinho, aparentando não se importar com a gritaria e com o cenário de fim de mundo que o cerca.
Saddam Hussein é estudante do segundo grau, tem 20 anos de idade, ganhou este nome do pai em homenagem ao presidente iraquiano e estava fazendo compras em Al Tadji, o paupérrimo centro comercial do paupérrimo subúrbio de Al Shola, localizado no norte de Bagdá, quando dois mísseis que supostamente seriam da coalizão anglo-americana teriam atingido por engano o meio da praça.
Aconteceu às 18h30 locais (12h30 de Brasília) de sexta-feira. Com o impacto, morreram 58 pessoas e outras 49 ficaram feridas, crianças e mulheres entre elas, segundo autoridades iraquianas.
É o pior ataque a uma área civil na capital iraquiana desde que começou a guerra no país e o segundo em menos de 48 horas, o que tem revoltado a população local e unido a militares grande número de civis até então desmobilizados em manifestações de apoio a Saddam Hussein e repúdio aos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido.
"Não há nada militar naquela área", afirma Kamal A. Mustafa, diretor do hospital Al Noor, para onde foi levada a maioria dos feridos e dos corpos carbonizados após a explosão.
Mas há muita pobreza. O mercado cheira a fezes, porque o esgoto corre a céu aberto, nas guias das ruas.
Com o embargo econômico imposto ao Iraque depois da Guerra do Golfo de 1991 pela ONU -por iniciativa dos mesmos governos norte-americano e britânico-, o país está proibido de importar encanamento, pois é artigo de utilidade mista, tanto civil quanto militar. O resultado é que, quando um cano de saneamento quebra, permanece quebrado.
Pisando o chão, meninos descalços tentam desviar das poças infestadas de mosquitos e das marcas de sangue e de restos humanos deixados pela explosão. Quase no centro da praça uma pequena cratera de dois metros de profundidade por um de diâmetro, que seria de um dos mísseis derrubados. Ao lado, um par de chinelos marca o local onde uma das pessoas foi morta.
Próximo dos pequenos quiosques destruídos pelo impacto que circundam a praça, senhoras gordas vestidas de preto e com as cabeças cobertas choram enquanto contam o que ocorreu e amaldiçoam o presidente norte-americano George W. Bush.
"Isso acontece porque ele não tem nenhuma religião", grita uma delas, que embala -escondido sob um pano também preto-um bebê que também chora. As mulheres que a observam batem forte na própria testa com a mão direita, em sinal de penitência e desespero.
Homens começam a preparar o toldo onde será feito o funeral de três irmãos mortos no ataque, Ali, Hussein e Mohammed Ghafil, 21, 19 e 14 anos, respectivamente. Enquanto erguem a estrutura de metal, a multidão vem passando pelos braços um caixão que acaba de chegar do hospital.
É de um vizinho dos três irmãos, que tinha sido levado para a enfermaria, mas acabou não resistindo e morreu há minutos. Todos gritam palavras de ordem e cantam.
"Os Estados Unidos vão pagar caro por esta guerra", prometeu o ditador Saddam Hussein. O líder iraquiano, não o menino agora mutilado.

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