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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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A caixa de Pandora

GILLES KEPEL
DO ""LE MONDE"

A lém de desarmar Saddam Hussein e removê-lo do poder, a intervenção militar no Iraque tem por objetivo principal fechar a caixa de Pandora que os EUA abriram quando escolheram encorajar, armar e financiar aliados locais pouco recomendáveis que acabaram por voltar-se definitivamente contra eles.
Saddam -mas também os ""jihadistas" e os talebans do Afeganistão- se inscreviam nessa mesma lógica com a qual Washington hoje quer romper.
Para compreender o que está em jogo nesta aposta de alto risco, é preciso retroceder para 1979.
O mês de fevereiro daquele ano foi marcado pelo desmoronamento do regime do xá, ""xerife do golfo Pérsico" e pilar essencial da segurança dessa zona petrolífera, enquanto triunfava a revolução islâmica no Irã aos gritos de ""Morte ao Grande Satã!".
Em novembro, o ataque de radicais contra a Grande Mesquita de Meca marcou a fragilidade do aliado saudita e os limites do uso conservador e pró-americano que podia ser feito do islã wahabita.
Em dezembro o Exército Vermelho entrou no Afeganistão.
Traumatizados pela Guerra do Vietnã, que terminara quatro anos antes, os Estados Unidos não enviaram seus próprios soldados para conter a expansão iraniana ou repelir a invasão soviética -eles ""repassaram" a operação a dois aliados circunstanciais, devidamente armados e financiados por eles e pelas petromonarquias da península Arábica.
Em setembro de 1980, o Iraque de Saddam ataca a República Islâmica do Irã e contém a expansão iraniana para o oeste, protegendo o petróleo da península.
Os afegãos e outros jihadistas árabes ou paquistaneses abrem fogo contra o Exército Vermelho, e, de passagem, desviam o antiamericanismo do islã radical khomeinista para um anti-sovietismo de boa feitura wahabita.
Irã e Iraque ficam exauridos, e o Afeganistão, em ruínas, mas essa dupla vitória política não custou praticamente nada ao Orçamento dos EUA, e as tropas americanas não arriscaram suas vidas nessas batalhas incertas.
Então a Casa Branca lava suas mãos da sorte desses dois aliados indesejáveis. Por um lado, pára de subvencionar os jihadistas. Por outro, não dá assistência alguma ao Iraque.
Os efeitos dessa política de Pôncio Pilatos são conhecidos: no dia 2 de agosto de 1990 Saddam anexa o Kuait, apoderando-se do cofre-forte, e, no dia 7, o rei Fahd pede socorro às tropas americanas.
Washington se vê, então, obrigada a recorrer temporariamente a seus próprios soldados, apoiados pela coalizão internacional criada na época. A vitória militar é inapelável e praticamente não deixa mortos. A operação ""Tempestade no Deserto" parece ser um triunfo político absoluto para os Estados Unidos.
Mas estes escolhem deixar-se contaminar pelas duas chagas do leste do Oriente Médio: a questão iraquiana é recoberta pelo emplastro do embargo, deixando Saddam prosperar no poder, e ninguém se preocupa com o aumento do poder dos jihadistas em torno de um certo Bin Laden.
Depois de 11 de setembro de 2001, quando a jihad é levada ao coração dos EUA, a administração George W. Bush questiona profundamente a política externa seguida desde 1979. Os dois regimes fundados pelos antigos aliados americanos dos anos 1980 -o do Taleban, no Afeganistão, e o de Saddam Hussein no Iraque- serão condenados a serem cirurgicamente removidos.
A política de recorrer a ""terceirizados" locais parecia, a curto prazo, custar menos, ou até mesmo ser rentável. Mas a verdadeira fatura foi apresentada com o terrorismo dos anos 1990, o fracasso do processo de paz em 2000, a ameaça à segurança do fornecimento petrolífero e os atentados de 11 de setembro.
Para Washington, o custo revelou ser muito superior às economias em homens e em dólares que pareciam ter sido feitas, e o perigo, maior do que se imaginara. Era preciso fechar a caixa de Pandora aberta em 1979.
George W. Bush é prisioneiro do calendário, que lhe impõe uma vitória rápida e inquestionável. Sem isso, ele corre o risco de abrir um pouco mais a caixa de Pandora, liberando em todo o Oriente Médio as forças hostis que correm o risco de desagregar a região e dificultando ainda mais o estabelecimento da ""pax americana".


Gilles Kepel é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris
Tradução de Clara Allain

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