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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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GEOPOLÍTICA

Para ex-assessor dos EUA, tentativa de democratizar Iraque deve incitar ataques de vizinhos árabes

Pós-guerra terá terror, prevê analista

FERNANDO CANZIAN
DE WASHINGTON

O governo de George W. Bush e os americanos em geral estão sendo "otimistas" demais e "multilaterais" de menos na questão do Iraque. Essa combinação deve frustar rapidamente os planos de uma estabilização rápida no Iraque pós-guerra e levar países vizinhos árabes a ""ações terroristas" contra a ocupação americana, vista como ameaça a seus governos autoritários.
A opinião é de Jon B. Alterman, doutor em história pela Universidade Harvard, ex-assessor do Departamento de Estado dos EUA, membro do Conselho de Relações Internacionais de Washington e autor de vários livros sobre o Oriente Médio.
""Na maioria dos casos, nós americanos achamos que temos a resposta para tudo. O pior é que acreditamos nisso", diz.
Leia a seguir entrevista que Alterman concedeu à Folha:

Folha - Como o sr. explica o fato de os americanos acharem que estão fazendo a coisa certa quando boa parte do mundo acha que estão errados?
Jon B. Alterman -
Existe uma visão do mundo que é a de dentro dos Estados Unidos e outra que é de fora. As pessoas aqui percebem que outros países não quiseram entrar nesta guerra conosco, mas elas não conseguem de maneira nenhuma entender por que esses países não o fizeram. Como é possível não terem entrado na nossa ""cavalaria" para salvar o Iraque? Isso tem muito a ver com o tipo de notícia que lêem, com como a televisão está orientando a cobertura da guerra. A CNN americana, por exemplo, está complemente diferente da CNN internacional.
E o mais impressionante é que os americanos não se sentem isolados agindo dessa maneira. Eles se acham no direito sagrado de defender os seus interesses. Ponto final.
Não somos multilaterais. Na maioria das vezes, somos só americanos. Temos torta de maçã e a resposta para tudo desde o século 19. É por isso que os europeus ficam tão irritados quando nós falamos a respeito da filosofia do que chamamos de velha Europa.

Folha - Quais os riscos de uma operação tão ambiciosa como a de conquistar o Iraque e democratizar o país?
Alterman -
Os americanos estão otimistas demais. O fato de a população do Iraque viver há quase 30 anos sob um regime brutal é apenas um dos aspectos da dificuldade que vamos enfrentar. O regime de Saddam Hussein não apenas incentivou a formação de grupos políticos muito diferentes no Iraque como também jogou uns contra os outros para se manter no poder ao longo dos anos. As diferenças religiosas também foram estimuladas e aprofundadas.
Creio que seja muito, muito difícil transformar isso em uma democracia na velocidade com que estamos pretendendo. Uma das razões pelas quais as democracias funcionam é porque todas as identidades múltiplas que elas comportam têm uma longa história de convivência.
O que vimos no Afeganistão, com suas divisões regionais, não é nada perto do que nos espera no Iraque. Haverá também uma enorme luta pelo poder entre os grupos que se desenvolveram no exílio. Todos eles se sentirão no direito de voltar e tentar comandar o país.

Folha - Os EUA acreditam que o Iraque pode ser o ponto de partida para que a democracia se espalhe por toda a região.
Alterman -
Os vizinhos iraquianos são outro problema não considerado. Quanto mais a administração Bush ressaltar a importância do Iraque como plataforma para lançar a semente democrática na região, mais estaremos incitando e dando motivos para que os vizinhos do Iraque se transformem em ameaças reais. Estamos falando de regimes não-democráticos, que não têm o menor interesse em democracia.
Quanto mais avançarmos ou falarmos no efeito dominó democrático, mais eles terão interesse em desestabilizar. Podem facilmente realizar ou financiar ações terroristas usando os grupos descontentes que estarão sendo alijados do poder no Iraque. As possibilidades de boicote e entrave são imensas.

Folha - Os árabes que vivem sob regimes não-democráticos não pensam diferente?
Alterman -
Acabo de voltar de um fim de semana em Omã, que, comparado aos outros países da região, é relativamente ponderado. Enquanto nós nos vemos como uma força benevolente para a região, todos nos vêem como malignos, como algo ambicioso, mesquinho e opressor que procura apenas novas bases para ampliar o nosso poder.
Tudo o que dizemos em relação a parcerias com países da região, em esforços para desenvolver a qualidade de vida dessas pessoas, não tem o menor eco entre a população desses países. Simplesmente não faz sentido. É apenas idealismo e pretensão da nossa parte.

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