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CONTINENTE PERDIDO
Guerras civis estão levando ex-potências coloniais a aumentar envolvimento com países da região
Tragédias forçam "recolonização" da África
STEPHEN SMITH
DO "LE MONDE"
O pretexto ganhou fundamento
com um século de atraso. Como
se fosse para comprar de volta
seus domínios coloniais, o Ocidente multiplica suas operações
militares humanitárias na África,
visando pôr fim a "lamentáveis
matanças tribais". Na época em
que se falava nesses termos, quem
o fazia não tinha medo de se investir de uma chamada "missão
civilizadora". Hoje, no continente
dos conflitos mais mortíferos do
planeta, a comunidade internacional intervém com seu corpo
defensor, implorando uma "parceria exigente" com os líderes
africanos, para salvar as populações civis.
A "parceria exigente" estava
presente no discurso proferido no
último 13 de junho pelo chanceler
francês, Dominique de Villepin,
no Instituto de Altos Estudos da
Defesa Nacional. "Ao abrir as
portas para um mundo novo, a
queda do Muro de Berlim não se
fez acompanhar da pacificação
esperada", disse.
É o mínimo que se pode dizer.
Afinal, desde o fim da Guerra Fria,
os conflitos africanos ditos "desestruturados" já custaram a vida
a mais de 3 milhões de civis no
Congo (ex-Zaire), mais de 300 mil
pessoas no Burundi, 200 mil em
Serra Leoa, o mesmo tanto na Libéria. E tudo isso sem falar na
Costa do Marfim, no norte de
Uganda, na Somália, no final especialmente mortífero da prolongada guerra civil de Angola (pelo
menos 500 mil mortos) ou no
conflito que ainda se arrasta entre
o norte e o sul do Sudão (2 milhões de mortos).
A título de comparação, os mortos civis durante a última guerra
no Iraque não chegaram a 5.000.
Nova pacificação
Mesmo escondido atrás de uma
retórica que a eufemiza, a nova
"pacificação" da África é de cegar
os olhos. Na última cúpula do G8,
em Evian, os países ricos mantiveram apenas o artigo primeiro
-sobre a segurança e prevenção
de conflitos- da Nova Parceria
para o Desenvolvimento da África, esse catálogo de projetos a serem financiados em troca da "boa
governança" prometida pelos Estados africanos. Uma década após
o retorno do pluralismo político
na África, o vínculo entre democracia e desenvolvimento parece
ser menos evidente que a total incompatibilidade entre desenvolvimento e guerra.
Acontece que o estado de guerra
permanente é o cotidiano de quase a metade dos países africanos e,
em alguns casos, configura-se como um horizonte sem fim.
"Ninguém se mobiliza em prol
da Libéria", lamentou o arcebispo
de Monróvia, monsenhor Michael Francis, uma das últimas
autoridades morais respeitadas
do país que, no passado, recebeu
escravos americanos libertos e, há
13 anos, virou terra de massacres.
"Os britânicos intervieram em
Serra Leoa, os franceses, na Costa
do Marfim, mas os Estados Unidos nos abandonam, sendo que a
Libéria realmente precisa de uma
intervenção internacional."
A queixa lembra a do ex-presidente liberiano William Tubman,
que lamentava, já nos anos 1960, o
fato de seu país "não ter tido a sorte de ser colonizado".
A Costa do Marfim e a República Centro-Africana tiveram essa
"sorte". E esse fato lhes vale hoje a
intervenção militar da França, antiga policial da África durante a
Guerra Fria, transformada em
guardiã da paz após o 11 de Setembro. "A título temporário",
Paris concordou em enviar 1.500
homens para Bunia, no leste do
Congo (Brazzaville).
Por três meses, um dos quais será necessário para posicionar as
tropas e seus materiais no local,
esse contingente, em meio a uma
floresta de bandeiras (de todos os
países que apóiam a operação,
mesmo sem contribuir com soldados), deverá supostamente
"garantir a segurança da cidade e
de seu aeroporto", uma pista de
pouso em estado tão lamentável
que é constantemente refeita.
Qual o interesse francês nisso?
Sem dúvida alguma, vidas serão
salvas em Bunia, cidade fantasma
da qual dois terços da população
já fugiu. Apesar disso, o objetivo
da operação é humanitário: diante da indiferença generalizada, a
menos que a França faça seus homens penetrarem nos recônditos
da mata africana, levando consigo
o maior número possível de outros Estados, a comunidade internacional não fará nada para criar
as condições propícias para o fim
da "guerra total" que devasta o
Congo (ex-Zaire) há cinco anos.
É pelo fato de 1.500 militares
franceses se encontrarem em Bunia que os ministros francês, belga e britânico vão percorrer a região juntos, em julho, para dizer
aos Estados que patrocinam o
conflito -Ruanda e Uganda-
que podem cortar a assistência
humanitária que prestam a eles.
São fundos que, até agora, vinham sendo dados de maneira
generosa, sobretudo por Londres,
apesar da pilhagem organizada
que eles fazem do país vizinho, o
Congo (ex-Zaire).
O empreendimento não é isento
de riscos para a França. É verdade
que Paris aproveita o ensejo para
manifestar sua indiferença para
com Washington. "Cabe a nós fazermos da África", explicou Dominique de Villepin, em 13 de junho, "a vanguarda de uma política que defende os princípios de
uma nova ordem mundial marcada pelo respeito pelo direito e a
primazia do diálogo."
Mas será que a África se dispõe a
servir de balão-de-ensaio dessa
ambição? Quando a ONU enviou
2.500 capacetes azuis ao Congo
(ex-Zaire), em 2001, ela o fez com
o objetivo de chamar a atenção
mundial para esse Estado mártir,
para dar um aval ao país, não, ao
que consta, com o intuito de assumir o controle de um país do tamanho da Europa Ocidental. O
que se seguiu já é sabido: impotente diante dos massacres, a
ONU precisou pedir socorro. Depois da saída da força-tarefa de
Bunia, terá que defender sua credibilidade no Congo com um
contingente reforçado.
Essa ameaça de escalada e de
impasse não deixa de ter ligação
com o fato de que a "força de urgência" sob comando francês não
integrou a Missão das Nações
Unidas no Congo (Monuc) -o
que teria sido o apoio mais evidente dado à nova ordem multilateral, sob a égide da ONU, que Paris afirma querer.
Os riscos não são menores no
antigo "quintal" da França. O que
dizer da Costa do Marfim, onde
Laurent Gbagbo deve a sobrevivência de seu regime a Paris, que
ele agora acusa de lhe dar apoio
insuficiente ou mesmo de querer
afastá-lo do poder para que possa
ser substituído por um presidente
mais "maleável" a ordens?
Impedido, no último 3 de janeiro, de deixar o palácio presidencial marfinense, onde desde então
passou a ser execrado, De Villepin
descobriu a duras penas até onde
chega a virulência do chamado
"patriotismo" marfinense. Instados a evitar um banho de sangue,
os demagogos de Abidjã reagiram
atiçando o sentimento nacionalista contra a suposta ingerência da
antiga potência colonial.
Segurança global
Para que, então, empreender essa segunda pacificação da África,
se ela só resulta em golpes contra
quem o faz? Porque o abandono
do continente de menor valor estratégico, desde o final da Guerra
Fria, já custou muito caro em termos de vidas africanas, mas também em segurança global, valor
esse que está em alta desde o 11 de
Setembro.
Se é verdade que o terrorismo
cresce no caos, mais ainda do que
na pobreza, também é verdade
que a união entre as redes de extremistas e os chamados Estados
delinquentes é o que constitui a
verdadeira ameaça à ordem mundial. Assim, será preciso garantir a
segurança desse quintal dos fundos da Europa, essa "África jovem" da qual 45% da população
tem menos de 15 anos, mas com
expectativa de vida que não passa
dos 47 -três décadas menos do
que os europeus.
A Europa intervém nesse planeta de "desesperados" com mil
precauções, em parceria com outros Estados ou com as organizações regionais africanas.
Em tempo: a operação européia
em Bunia escolheu como nome
de código "Artemis", a deusa grega "do mundo selvagem e de todas as paragens que a expansão
humana ainda não alcançou".
Tradução de Clara Allain
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