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São Paulo, segunda-feira, 30 de junho de 2003

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CONTINENTE PERDIDO

Guerras civis estão levando ex-potências coloniais a aumentar envolvimento com países da região

Tragédias forçam "recolonização" da África

STEPHEN SMITH
DO "LE MONDE"

O pretexto ganhou fundamento com um século de atraso. Como se fosse para comprar de volta seus domínios coloniais, o Ocidente multiplica suas operações militares humanitárias na África, visando pôr fim a "lamentáveis matanças tribais". Na época em que se falava nesses termos, quem o fazia não tinha medo de se investir de uma chamada "missão civilizadora". Hoje, no continente dos conflitos mais mortíferos do planeta, a comunidade internacional intervém com seu corpo defensor, implorando uma "parceria exigente" com os líderes africanos, para salvar as populações civis.
A "parceria exigente" estava presente no discurso proferido no último 13 de junho pelo chanceler francês, Dominique de Villepin, no Instituto de Altos Estudos da Defesa Nacional. "Ao abrir as portas para um mundo novo, a queda do Muro de Berlim não se fez acompanhar da pacificação esperada", disse.
É o mínimo que se pode dizer. Afinal, desde o fim da Guerra Fria, os conflitos africanos ditos "desestruturados" já custaram a vida a mais de 3 milhões de civis no Congo (ex-Zaire), mais de 300 mil pessoas no Burundi, 200 mil em Serra Leoa, o mesmo tanto na Libéria. E tudo isso sem falar na Costa do Marfim, no norte de Uganda, na Somália, no final especialmente mortífero da prolongada guerra civil de Angola (pelo menos 500 mil mortos) ou no conflito que ainda se arrasta entre o norte e o sul do Sudão (2 milhões de mortos).
A título de comparação, os mortos civis durante a última guerra no Iraque não chegaram a 5.000.

Nova pacificação
Mesmo escondido atrás de uma retórica que a eufemiza, a nova "pacificação" da África é de cegar os olhos. Na última cúpula do G8, em Evian, os países ricos mantiveram apenas o artigo primeiro -sobre a segurança e prevenção de conflitos- da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África, esse catálogo de projetos a serem financiados em troca da "boa governança" prometida pelos Estados africanos. Uma década após o retorno do pluralismo político na África, o vínculo entre democracia e desenvolvimento parece ser menos evidente que a total incompatibilidade entre desenvolvimento e guerra.
Acontece que o estado de guerra permanente é o cotidiano de quase a metade dos países africanos e, em alguns casos, configura-se como um horizonte sem fim.
"Ninguém se mobiliza em prol da Libéria", lamentou o arcebispo de Monróvia, monsenhor Michael Francis, uma das últimas autoridades morais respeitadas do país que, no passado, recebeu escravos americanos libertos e, há 13 anos, virou terra de massacres.
"Os britânicos intervieram em Serra Leoa, os franceses, na Costa do Marfim, mas os Estados Unidos nos abandonam, sendo que a Libéria realmente precisa de uma intervenção internacional."
A queixa lembra a do ex-presidente liberiano William Tubman, que lamentava, já nos anos 1960, o fato de seu país "não ter tido a sorte de ser colonizado".
A Costa do Marfim e a República Centro-Africana tiveram essa "sorte". E esse fato lhes vale hoje a intervenção militar da França, antiga policial da África durante a Guerra Fria, transformada em guardiã da paz após o 11 de Setembro. "A título temporário", Paris concordou em enviar 1.500 homens para Bunia, no leste do Congo (Brazzaville).
Por três meses, um dos quais será necessário para posicionar as tropas e seus materiais no local, esse contingente, em meio a uma floresta de bandeiras (de todos os países que apóiam a operação, mesmo sem contribuir com soldados), deverá supostamente "garantir a segurança da cidade e de seu aeroporto", uma pista de pouso em estado tão lamentável que é constantemente refeita.
Qual o interesse francês nisso? Sem dúvida alguma, vidas serão salvas em Bunia, cidade fantasma da qual dois terços da população já fugiu. Apesar disso, o objetivo da operação é humanitário: diante da indiferença generalizada, a menos que a França faça seus homens penetrarem nos recônditos da mata africana, levando consigo o maior número possível de outros Estados, a comunidade internacional não fará nada para criar as condições propícias para o fim da "guerra total" que devasta o Congo (ex-Zaire) há cinco anos.
É pelo fato de 1.500 militares franceses se encontrarem em Bunia que os ministros francês, belga e britânico vão percorrer a região juntos, em julho, para dizer aos Estados que patrocinam o conflito -Ruanda e Uganda- que podem cortar a assistência humanitária que prestam a eles. São fundos que, até agora, vinham sendo dados de maneira generosa, sobretudo por Londres, apesar da pilhagem organizada que eles fazem do país vizinho, o Congo (ex-Zaire).
O empreendimento não é isento de riscos para a França. É verdade que Paris aproveita o ensejo para manifestar sua indiferença para com Washington. "Cabe a nós fazermos da África", explicou Dominique de Villepin, em 13 de junho, "a vanguarda de uma política que defende os princípios de uma nova ordem mundial marcada pelo respeito pelo direito e a primazia do diálogo."
Mas será que a África se dispõe a servir de balão-de-ensaio dessa ambição? Quando a ONU enviou 2.500 capacetes azuis ao Congo (ex-Zaire), em 2001, ela o fez com o objetivo de chamar a atenção mundial para esse Estado mártir, para dar um aval ao país, não, ao que consta, com o intuito de assumir o controle de um país do tamanho da Europa Ocidental. O que se seguiu já é sabido: impotente diante dos massacres, a ONU precisou pedir socorro. Depois da saída da força-tarefa de Bunia, terá que defender sua credibilidade no Congo com um contingente reforçado.
Essa ameaça de escalada e de impasse não deixa de ter ligação com o fato de que a "força de urgência" sob comando francês não integrou a Missão das Nações Unidas no Congo (Monuc) -o que teria sido o apoio mais evidente dado à nova ordem multilateral, sob a égide da ONU, que Paris afirma querer.
Os riscos não são menores no antigo "quintal" da França. O que dizer da Costa do Marfim, onde Laurent Gbagbo deve a sobrevivência de seu regime a Paris, que ele agora acusa de lhe dar apoio insuficiente ou mesmo de querer afastá-lo do poder para que possa ser substituído por um presidente mais "maleável" a ordens?
Impedido, no último 3 de janeiro, de deixar o palácio presidencial marfinense, onde desde então passou a ser execrado, De Villepin descobriu a duras penas até onde chega a virulência do chamado "patriotismo" marfinense. Instados a evitar um banho de sangue, os demagogos de Abidjã reagiram atiçando o sentimento nacionalista contra a suposta ingerência da antiga potência colonial.

Segurança global
Para que, então, empreender essa segunda pacificação da África, se ela só resulta em golpes contra quem o faz? Porque o abandono do continente de menor valor estratégico, desde o final da Guerra Fria, já custou muito caro em termos de vidas africanas, mas também em segurança global, valor esse que está em alta desde o 11 de Setembro.
Se é verdade que o terrorismo cresce no caos, mais ainda do que na pobreza, também é verdade que a união entre as redes de extremistas e os chamados Estados delinquentes é o que constitui a verdadeira ameaça à ordem mundial. Assim, será preciso garantir a segurança desse quintal dos fundos da Europa, essa "África jovem" da qual 45% da população tem menos de 15 anos, mas com expectativa de vida que não passa dos 47 -três décadas menos do que os europeus.
A Europa intervém nesse planeta de "desesperados" com mil precauções, em parceria com outros Estados ou com as organizações regionais africanas.
Em tempo: a operação européia em Bunia escolheu como nome de código "Artemis", a deusa grega "do mundo selvagem e de todas as paragens que a expansão humana ainda não alcançou".


Tradução de Clara Allain


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