UOL


São Paulo, segunda-feira, 30 de junho de 2003

Texto Anterior | Índice

EUROPA

Ator e ex-ministro socialista estão envolvidos

Escândalo de pedofilia provoca terremoto político em Portugal

MARIE-CLAUDE DECAMPS
DO "LE MONDE", EM LISBOA

Lisboa se esconde sob o calor opressivo. É como se o clima estivesse em conluio com a tempestade político-judicial que abala a capital há vários meses e testa a jovem democracia portuguesa.
Ela começou em novembro do ano passado, quando veio à tona um escândalo que atinge uma das instituições mais emblemáticas de Lisboa: a Casa Pia, um centro educacional do Estado que abriga 4.500 menores carentes e que há 200 anos é visto como um símbolo da boa consciência social portuguesa.
De acordo com a imprensa -enfurecida desde a prisão preventiva de sete personalidades conhecidas, entre elas um ex-ministro socialista, um ator e um apresentador de televisão-, a respeitável Casa Pia vem servindo há mais de 20 anos como "viveiro" de uma rede de pedofilia. Foi um choque enorme para Portugal.
Tudo começou com Joel, 15, internado na Casa Pia aos 9. Afundado na poltrona, com o rosto parcialmente coberto por um capuz, ele conta sua história na televisão. Ele a repete sempre com as mesmas palavras e o mesmo sentimento de vergonha: "Foi há dois anos. Bibi era mensageiro da Casa Pia. Eu gostava muito dele. Ele falava comigo, me dava presentinhos... Eu chegava a chamá-lo de papai, porque nunca cheguei a conhecer o meu. Um dia, na praia, ele me violentou". Bibi, cujo nome verdadeiro é Carlos Silvino, abusou dele em 16 ocasiões, sempre ameaçando espancá-lo se fosse delatado.
Foi a mãe de Joel, indignada, quem resolveu falar. O escândalo fez manchetes.
Cinco crianças falaram num primeiro momento, depois dez, depois mais 15. Elas relataram as "noitadas especiais" às quais eram levadas, numa mansão em Cascais e noutra no Alentejo. O cenário era sempre o mesmo: menores de idade, levados de carro por Bibi, eram entregues ao bel-prazer de "senhores de terno ou de colete".
Pedro Strecht, um dos psiquiatras encarregados de avaliar os menores, já contabilizou 128 jovens vítimas.
Bibi acabou preso.
A opinião pública se tranquilizou. "Uma vítima que naturalmente se tornou agressora", disse o psiquiatra Strecht, convencido de que também Bibi foi violado na infância.
Mas como explicar que semelhante escândalo tenha sido sufocado? Nenhuma denúncia contra Bibi havia trazido resultado. Uma subsecretária de Estado para a Família disse que foi ameaçada de morte por ter tentado intervir. Um professor, Américo Henriques, vinha alertando para o problema desde 1975.
Foi aconselhado a "não ultrapassar suas funções". "Tentei por diversas vezes. Em 1986, compreendi que havia alguma coisa de muito forte por trás daquilo. Pensei em minha família e deixei o assunto de lado", confessa esse ex-aluno da Casa Pia.
Assim surgiu a teoria da rede toda poderosa. Os nomes dos envolvidos provocam comoção em Portugal: Herman José, o mais popular ator cômico do país, o embaixador Jorge Ritto e o apresentador de televisão Carlos Cruz, ícone das famílias populares. E o que dizer da prisão chocante do ex-ministro Paulo Pedroso, aquele no qual os socialistas apostavam seu futuro?
Foi a gota d'água que fez tudo estremecer. A opinião pública, unida na mesma indignação quando se tratava apenas do "caso Bibi" , se dividiu quando a investigação jogou por terra uma certa imagem de Portugal.
"O país inteiro se sente humilhado", responde o diretor-adjunto do jornal "Público", Eduardo Damaso. "Todos os ressentimentos vieram à tona de uma só vez: as críticas contra a Justiça classista, o desejo de pôr fim à corrupção constante, a desconfiança em relação aos homens públicos. Esse caso será o primeiro verdadeiro teste dos valores democráticos de nossas instituições, desde a revolução", disse Damaso, citando a Revolução dos Cravos, de 1974, que pôs fim à ditadura salazarista e instaurou a democracia no país.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Continente perdido: Tragédias forçam "recolonização" da África
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.