São Paulo, quarta-feira, 30 de junho de 2004

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COMENTÁRIO

Uma alegoria da América Latina

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

A volta de Lino Oviedo ao Paraguai, o mesmo general que já se fantasiou de imperador romano, é daqueles eventos que reafirmam o caráter alegórico da América Latina. Ao descer do avião, Oviedo sabia que seria preso e esperava por isso, pois lhe interessava transformar sua volta num dramalhão típico deste continente.
A América Latina oviedista é a realização de um certo "etos barroco", no qual a modernidade é incorporada quase sempre como farsa. O espetáculo teatral de Oviedo prova que a simulação, neste lado do mundo, é muito mais importante do que o real. "A aparência triunfa sobre os significados políticos, ditando os motivos que irão gerenciar a ação histórica", diz Janice Theodoro em "América Barroca".
Oviedo obviamente não está sozinho nessa carnavalização da história. Para ficarmos somente no século 20, tomemos como exemplo o peronismo, cujo eixo é o desprezo pelas teorias, pelo jogo político e, em última análise, pelas lições do passado. "Julgamos tudo empiricamente pelos resultados. Todas as demais considerações são inúteis", escreveu Perón em "Conducción Política".
Para o caudilho argentino, liderar é uma "arte" e, portanto, depende não da racionalidade, mas da "inspiração, que os homens têm ou não".
O resultado disso é que a retórica peronista -e oviedista, e chavista, e castrista, afinal- "não presentifica nada ausente e não estende nenhuma linha de distinção na dimensão do passado, mas mostra exclusivamente a plenitude do presente e da proximidade", diz Hans Ulrich Gumbrecht em "Modernização dos Sentidos". Isto é, a linguagem desse caudilhismo é pura forma e, portanto, surge totalmente descompromissada com a verdade histórica, quando não a afronta.
É assim que Oviedo tenta provar que não arquitetou um golpe de Estado em 1996, apesar de todas as evidências em contrário. É assim que Chávez procura passar por democrata, tendo ele mesmo tentado, em 1992, derrubar um governo eleito. É assim que Fidel defende as "conquistas" cubanas, enquanto aqueles que discordam de seu ponto de vista estão presos, exilados ou mortos.
É como na Macondo de Gabriel García Márquez, em que, após o massacre de 3.000 trabalhadores rebelados, os militares dizem: "Claro que foi um sonho. Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo, nem nunca acontecerá. É um povoado feliz".


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