São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2006

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Constituinte descarta lei atual na Bolívia

Por maioria simples, legisladores decidem que Carta será "originária" e poderá mudar toda a legislação vigente; oposição vê fraude

Impasse pára Assembléia, onde opositores pedem que Constituinte parta de leis já existentes, e governistas negam haver contravenção

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A SUCRE

Apesar de ainda não haver uma decisão final sobre o sistema de voto para a Assembléia Constituinte boliviana, os governistas aprovaram durante uma tumultuada sessão na madrugada de ontem um artigo que declara a nova Constituição "originária", isto é, com um mandato para mudar toda a legislação vigente no país.
A oposição, que defende uma nova Carta "derivada", levando em conta as leis em vigor, acusou a bancada do presidente Evo Morales de fraude e ameaça recorrer ao Tribunal Constitucional. "Outra vez, o MAS (Movimento ao Socialismo) atropelou, não cumpriu as normas que havíamos aprovado, nenhuma das normas básicas da democracia", disse o constituinte Samuel Doria Medina, líder da Unidade Nacional (UN) logo após a votação, na porta da Assembléia, em Sucre.
Ao longo das últimas semanas, a UN vinha negociando uma fórmula de consenso com o MAS para aprovar um sistema de votação, mas as conversas fracassaram. Agora, a terceira maior bancada do país ensaia uma aproximação com o Podemos -mas o principal partido oposicionista, dono da segunda bancada, só aceita o sistema de votação por dois terços, como prevê a Lei de Convocatória, aprovada pelo Congresso em abril último.
Os governistas começaram defendendo o voto por maioria simples, o que evitaria negociações prolongadas. Nesta semana, apresentaram um sistema misto, rejeitado pela oposição. O impasse tem paralisado os trabalhos da Constituinte, instalada em 6 de agosto.

Improvisos
A votação na Assembléia Constituinte, improvisada em um grande teatro da cidade histórica de Sucre (a 400 km de La Paz), começou por volta das 0h35, a 15 minutos de a sessão completar 6 horas -tempo máximo previsto no regulamento.
Até então, só 25 dos 97 constituintes inscritos haviam discursado, repetindo argumentos sobre os dois temas mais disputados -se a votação deve ser por dois terços ou maioria simples e se a Carta deve ser "originária" ou "derivada".
"Esta Constituinte foi convocada por uma Lei de Convocatória do atual Congresso, baseado na atual Constituição. Portanto, negar o que foi feito neste país até agora é negar a nossa própria existência aqui", discursou um constituinte da oposição, formada praticamente por brancos e posicionada no lado direito do hemiciclo.
"Antes da chegada dos espanhóis, vivíamos felizes", disse um constituinte do MAS, cuja bancada, do lado esquerdo, é predominantemente indígena -muitos, vestidos em trajes típicos, mascavam coca durante a sessão. "E pela primeira vez os quéchuas e aimarás participamos de uma Constituinte do que hoje é a Bolívia", completou, em alusão às etnias que formam 55% da população.
Quando a sessão estava próxima do fim, o vice-presidente oficialista, Roberto Aguilar, propôs a votação do artigo sobre o caráter da Assembléia "para dar um sinal à população de que estamos trabalhando". A proposta foi imediatamente aceita pela presidente da Assembléia, a também governista Silvia Lazarte, considerada pelo próprio MAS como o "braço direito" do presidente Morales.

Confusão
A manobra desatou a ira da oposição. Um membro de Podemos da mesa diretora começou a bater boca com um governistas -os dois só não trocaram socos porque foram separados. No hemiciclo, um oposicionista conseguiu ligar o microfone e repetiu inúmeras vezes que não poderia haver votação sem a aprovação de um sistema de voto, mas o processo seguiu com duas votações.
Por causa do tumulto, vários constituintes disseram que seus votos não foram registrados. A própria chefe da bancada do MAS, Mirtha Jimenez, admitiu que apertou o botão de votação de forma errada -seu voto foi registrado como contrário à posição governista.
No final, a Assembléia "originária" -termo que remete tanto à idéia de fundação quanto à população indígena- venceu com 159 votos (63%). Houve 80 votos contrários (32%), 10 que não votaram e 2 abstenções.
"Há observações de forma, mas não de fundo", disse à Folha o constituinte do MAS Marcos Casillo. "Nem todos falaram sobre sua posição. Mas obviamente o MAS não está cometendo nenhuma arbitrariedade ou contravenção. Para aprovar o regulamento geral, é maioria simples, e o MAS respeita o que diz a Lei de Convocatória -só o texto final deve ser aprovado com dois terços."
Ontem de manhã, o governo cedeu em parte à oposição e promoveu uma nova votação sobre o artigo, desta vez de forma nominal -cada um dos 251 constituintes presentes (ao todo, são 255) teria dois minutos para justificar seu voto.


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