São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 2006

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Ex-ditador foi personagem frio e cruel

Arruinou o país e só caiu com os americanos; há 30 anos, sua morte mudaria o Oriente Médio; hoje não fará diferença

Saddam sempre se viu como um ser histórico, fez e perdeu duas guerras e enfraqueceu um país próspero, com elite educada


Ben Curtis - 19.out.2005/Associated Press
Saddam Hussein durante uma das sessões de seu julgamento


PATRICK COCKBURN
DO "INDEPENDENT"

Saddam Hussein lançou duas guerras desastradas e arruinou seu próprio país. Eu o encontrei pela primeira vez em 1978, quando ele era apenas "o homem forte do Iraque", um ano antes de ele executar seus concorrentes da direção do Baath e se tornar o poderoso presidente do país.
Criticá-lo nos bares de Bagdá era altamente perigoso. As pessoas evitavam derrubar gotas de café nos jornais em que a foto dele era invariavelmente publicada na primeira página.
Saddam sempre teve a ambição de se tornar uma figura histórica, comparável a Nabucodonosor e Saladim. No auge da guerra com o Irã, e com as finanças iraquianas já esquálidas, ele reconstruiu Babilônia com pedras vermelhas em que seu nome vinha gravado. Mais de 1 milhão morreram com sua invasão do Irã. Em 1990, ele invadiu o Kuait e foi derrotado por forças internacionais.
Ao chegar ao poder, governava um país com petróleo, muito dinheiro, administração competente e população altamente educada. Ele o deixou em ruínas. As sanções votadas pela ONU (1990-2003) enfraqueceram o Estado, desintegrado com sua queda.
Ele era cruel por natureza. Mas era também o produto de um país violento e dividido. Exerceu a lógica pela qual a minoria sunita apenas se mantinha no poder pela força.
Embora se retratasse como um soldado, suas verdadeiras aptidões eram a de um agente secreto, impondo medidas contra potenciais conspiradores.
O Iraque que Saddam governou era uma mistura estranha de antigo e moderno. Os mecanismos do Estado se assemelhavam ao do Leste Europeu, sob o comunismo. Havia um círculo restrito de poderosos, rodeado por serviços de segurança. Saddam sabia manipular as diferenças tribais.
Seus mais próximos assessores eram parentes originários de tribos sunitas. Seus muito inimigos jamais verdadeiramente ameaçaram derrubá-lo.
Não tinha grande experiência de países estrangeiros. Morou fora do Iraque apenas quando se exilou no Egito, em 1959, depois de fracassada tentativa de assassinar o presidente Abdul Kareem Qasem.
Apesar de seus sucessivos desastres, ele mantinha a autoconfiança. As pessoas inteligentes que o rodeavam raramente ousavam discordar dele. Em qualquer parte do Iraque inúmeros cartazes estampavam sua imagem, óculos escuros e camisa de mangas curtas, bronzeado como um ator.
Havia nele algo de teatral. A derrota de 2003 o humilhou. Em dezembro do mesmo ano, ele foi alçado de um buraco onde se escondia. Foi atirado à prisão. Os iraquianos começaram a se esquecer dele quando o julgamento começou. Ele voltou a ter uma plataforma para manter sua imagem.
As audiências do tribunal eram transmitidas pela TV. Saddam desafiava os promotores. Isso fascinava os iraquianos mais humildes. Os sunitas sentiam por ele simpatia. Os curdos, por longos anos suas vítimas, queriam vê-lo enforcado. E os xiitas, mesmo odiando-o, admitiam viver com maior segurança sob sua ditadura.
Se morto num atentado há 20 ou 30 anos, a história do Oriente Médio teria sido diferente. Mas sua morte não fará agora nenhuma diferença.
Nascido em Ouija, em 1937, ele era filho de um camponês que morreu pouco antes ou pouco depois de seu nascimento. Foi criado pela mãe e por dois tios. Tornou-se membro do partido Baath, que apenas tinha uma boa implantação no Exército e que se tornou poderoso em 1968.
Viveu em palácios esplendorosos. Gostava de charutos cubanos. Dizia escrever romances históricos. Desta vez, teve sua grande derrota.


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