São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 2006

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Análise

Bom para os EUA, não para a Justiça

SÉRGIO DÁVILA
EM SÃO PAULO

Quando estive em Bagdá, ainda sob o governo de Saddam Hussein e quando as bombas da invasão anglo-americana começaram a cair, conheci um iraquiano que havia sido torturado a mando do então ditador. Por um motivo qualquer, Karim Kadum foi levado pela polícia política a uma das centenas de prisões espalhadas pelo país. Como ele, milhares foram presos, torturados, mantidos vivos em caixões.
O que você espera dessa guerra? Foi uma das perguntas que fiz. "Justiça", ele me respondeu.
A execução de Saddam Hussein na madrugada de hoje serviu aos interesses do governo norte-americano, ao desejo da Casa Branca de sair do Iraque de maneira menos vergonhosa e aos planos de vingança de George W. Bush, anteriores ao 11 de Setembro. Ganharam os falcões que continuam pendurados no poder dos EUA e os líderes da maioria xiita iraquiana, da qual o primeiro-ministro Nuri Al Maliki é a face institucional.
Perdeu Karim Kadum, porque perderam o direito internacional, a memória das vítimas do ex-ditador, enfim, a Justiça. O julgamento a que o ex-dirigente foi submetido foi uma pantomima ensaiada há dois anos em Londres, onde juízes e magistrados iraquianos foram treinados por seus equivalentes norte-americanos.
Saddam sai da vida e entra para o lado infame da história sem responder a todos os crimes que cometeu, tão ou mais graves que a morte de 148 xiitas em 1982. Deixa vazio o banco dos réus de um segundo julgamento, ainda em curso, e os que viriam. Com ele morrem os detalhes de prisões arbitrárias, torturas e assassinatos, e fica no ar a eterna dúvida de testemunhos da acusação feitos sem a presença do acusado.
O ex-líder baathista cometeu crimes contra a humanidade; os EUA e o governo fantoche de Bagdá negaram o direito à humanidade, via tribunais internacionais, de ver esses crimes esclarecidos e punidos. Saddam Hussein merecia passar o resto de seus dias numa prisão comandada por uma força multinacional, tentando subornar a guarda por mais tinta para os cabelos. Executado, passa de assassino a mártir, pelo menos para parte importante do Iraque, os sunitas; mártir também para muitos do mundo árabe, que enxergam outro motivo para a radicalização.
A democracia é o menos pior dos regimes; a atual democracia norte-americana, não. É essa que George W. Bush e seus amigos tentam implantar a pontapés no Oriente Médio. Um de seus pilares menos comentados é a pena de morte, como o mundo se lembrou hoje.


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